por Roque Tadeu Gui, analista pelo Instituto Junguiano de Brasília, filiado à Associação Junguiana do Brasil – AJB e à IAAP. Integrante da curadoria do Observatório da Psicologia Analítica.

Curatorial:

Conhecemos as divergências, e acordos pontuais – nem sempre declarados – entre Sigmund Freud (1856-1939) e Carl Gustav Jung (1875-1961), sobre o papel da religião na vida dos seres humanos. Esse é o pano de fundo de um suposto encontro do pai da psicanálise com o escritor C. S. Lewis (1898-1963), na peça ficcional “A Última Sessão de Freud”, exibida em teatros brasileiros e, na versão cinematográfica em canal de streaming, no qual esses dois brilhantes interlocutores discutem questões relativas ao amor, sexo, morte e sentido da vida.


A peça teatral “A Última Sessão de Freud” tem roteiro assinado por Mark St. Germain, dramaturgo americano, e é baseada no livro “Deus em Questão” (2002), escrito pelo psiquiatra americano Armand M. Nicholi Jr., professor clínico de psiquiatria da Harvard Medical School.

A peça tem sido apresentada em diversos países, inclusive no Brasil, em São Paulo, Curitiba, Belo Horizonte, Recife, João Pessoa, Ribeirão Preto, São José dos Campos e Campos do Jordão (1).

Foi adaptada para o cinema, em película dirigida por Matt Brown, de “O homem que viu o infinito” (2015), estrelada por Anthony Hopkins, como Sigmund Freud (1856-1939), e Matthew Goode, como Clive Staples Lewis (1898-1963), conhecido como C. S. Lewis em sua vasta literatura. Curiosamente, Anthony Hopkins já interpretou C. S. Lewis no filme “Terra das Sombras” (1993), que narra a história de quando Lewis perdeu a esposa.

A trama apresenta um encontro fictício entre o pai da psicanálise e o escritor, poeta e crítico literário, intelectuais que influenciaram o pensamento científico e filosófico do século 20.

Não há claras evidências de que tal encontro tenha de fato ocorrido. Sabe-se, sim, que certo professor de Oxford teria visitado Freud.

A maior parte dos diálogos, nessa obra ficcional, ocorre no consultório onde Freud desenvolvia seu trabalho enquanto estava exilado na Inglaterra, depois de ter fugido da perseguição nazista na Áustria, no ano de 1939, em plena segunda guerra mundial.

Freud, como é largamente sabido, mostra-se um crítico implacável da crença religiosa, para ele uma “ilusão” da qual os seres humanos não conseguem abrir mão. C.S. Lewis, renomado professor de Oxford, crítico literário, ex-ateu, torna-se influente defensor da fé baseada na razão.

Os protagonistas debatem, de forma apaixonada, o dilema entre ateísmo e crença em Deus.

Freud quer entender por que um ex-ateu, um brilhante intelectual como C.S. Lewis, pode abandonar a verdade por uma mentira insidiosa, tornando-se um cristão convicto.

No gabinete de Freud, na Inglaterra, os dois conversam sobre a existência de Deus, e a conversa se estende para assuntos diversos, tais como o sentido da vida, a natureza humana, o sexo, a morte e as relações humanas.

A obra faz um forte apelo à sensibilidade do expectador, por meio do humor (com inteligência, ironia e certo sarcasmo, por parte do pai da psicanálise), a sagacidade dos dois intelectuais e o resgate da escuta como ponto de partida para uma boa conversa. Impossível ao expectador, crente ou ateu, não se envolver no confronto das ideias ali expostas!

O título da peça/filme apresenta uma sutil ambiguidade que, ao meu ver, supera o expressivo título do ensaio de Nicholi, “A questão de Deus”. “A última sessão de Freud” suscita a pergunta sobre “quem” estaria em processo de análise, se Freud ou C. S. Lewis. E “quem” seria o analista e o analisando.

Arriscaria dizer que ambos são parceiros analíticos, numa jornada em busca de esclarecimento sobre questões essenciais da vida humana.

De fato, o diálogo estabelecido entre os dois gênios do pensamento ocidental produz uma tensão somente vista em momentos criticos de um processo analítico. Cada qual questiona a posição do outro: Freud chega a acusar C. S. Lewis de ser um covarde, escondendo sua fragilidade sob as asas de um ser divino, e C. S. Lewis questiona as certezas ateístas de Freud.

O clima da trama é de certa fleuma, característica da intelectualidade britânica de Oxford. Freud é mais atrevido, mais agressivo até. Sofre de um câncer bucal que o atormenta há anos. Mas, muito mais do que as dores físicas, o velho professor, o primeiro psicanalista, mostra-se inconformado com a possibilidade de um deus que permite atrocidades contra inocentes. Estão em plena segunda guerra mundial, Freud já perdeu filhos e filha, resta-lhe tão somente Anna Freud, sua filha dileta, igualmente analista e zeladora de seu patrimônio científico. Nada mais.

A presença de um jovem, como C. S. Lewis, ateísta convertido ao cristianismo, apresenta-se como uma afronta às convicções de Freud de que a religião representa uma ilusão daqueles que não suportam o fato de sermos frágeis, vulneráveis e indefesos diante das vicissituides da vida. Os covardes, portanto. Os que não conseguem exercer o “amor fati” que, segundo Nietzsche, implica afirmar a vida em toda a sua potência, paixão, ódio, temor, fatalidade e dureza. Os que o negam, refugiam-se na doce ilusão de um além-mundo, diz Freud.

Alguns críticos apontam que o enredo coloca Freud, com seu humor inteligente e ácido, numa retórica mais ofensiva, enquanto C. S. Lewis, conhecido como um intelectual de finas e argutas argumentações, estaria sendo apresentado numa posição mais acuada, reticente. Um jovem pensador cristão diante de um ancião pensador ateísta.

Contudo, C. S. Lewis, com sua fleuma e polidez, apresenta-se como um indagador da verdade, colocando suas dúvidas, suas incertezas, acolhendo e suportando as convicções iradas do pai da psicanálise. Essa contenção permite que o diálogo se processe até o final da película. Isso é claramente apontado por Anna Freud (1895-1982) ao encontrar com C. S. Lewis na saída do encontro, já ao final do filme, perguntando-lhe: “Conseguiu sobreviver?”. Anna conhece, melhor do que ninguém, o temperamento do pai, e o desafio de enfrentar sua afiada verve!

No filme, o pai mostra-se intransigente, negando a possibilidade de um relacionamento de Anna com um pretendente, alegando a diferença de idade entre os dois. Contudo, perde a contenda quando Ana confronta-o com seu amor por Dorothy Burlingham. Um autêntico drama psicanalítico!

Tais elementos do relacionamento erótico de Anna é uma autopermissão poética do roteirista ficcional, não explorado por Nicholi Jr. em seu livro.

Recomendo o livro de Nicholi (2) para aqueles que desejam conhecer em detalhes os argumentos desses dois brilhantes pensadores. Para conceber a história ficcional, o bom roteirista aproveitou-se da “dica” do epílogo do interessante livro de Nicholi, no qual o psiquiatra levanta a plausibilidade de ter ocorrido de fato esse encontro.

REFERÊNCIAS
(1) Confira em https://www.narniano.com/a-ultima-sessao-de-freud…/
(2) Nicholi, Armand M. Deus em questão: C. S. Lewis e Sigmund Freud debatem Deus, amor, sexo e sentido da vida. Trad. Gabriele Greggersen. Viçosa: Ultimato, 2005.

Crédito da Imagem: Prime Vídeo. Divulgação.