Nicholas Emanuel, psicólogo junguiano dedicado a pesquisas em religião comparada, misticismo e antropologia. Integra o Departamento de Complexos Culturais, Política e Individuação da Associação Junguiana do Brasil – AJB

Curatorial

Um filme e uma notícia. O filme é de Walter Salles. A notícia é da revelação das investigações da Polícia Federal sobre a tentativa de golpe de Estado sofrido pelo Brasil, urdido ao longo da gestão presidencial anterior à atual. O filme que nos traz a triste memória de outro golpe vivido por nossa cidadania, 1964. O ano que não acabou, ao descobrirmos que os inconformados com a Democracia “ainda estão aí”. Continuam tramando a portas fechadas, no mesmo porão em que as torturas decorrentes da ditadura ocorriam. Eunice é uma esperança, também “está aqui”, como símbolo de resistência. Nicholas Emanuel nos oferece um belo e sensível ensaio sobre tempos de escuridão e a necessidade da resistência.
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Desde criança tenho medo da tortura. Ela sempre permaneceu em mim, como um fantasma. Essa ideia de ser acorrentado, queimado, afogado – tortura, que assombro.

Pessoalmente, não faria muito sentido. Minha família era invisível, pobre e faminta durante os anos 60/70. Era uma clássica família trabalhadora que não tinha nada. Não foram torturados por militares, mas foram torturados pelo trabalho, pela exploração do tempo e da alma. Interioranos mineiros, inertes camponeses – o que importa para quem passa fome, se o Estado é democrático ou fascista? Comer é mais urgente que votar. Entretanto, será que viver é melhor que sonhar?

“Ainda estou aqui”, novo longa do diretor Walter Salles, me levou a um lugar que nunca habitei. Embora seu roteiro seja sobre o desaparecimento de Rubens Paiva, ex-deputado federal, o roteiro parece (indiretamente) contar a história de várias famílias, vários sujeitos brasileiros.

A obra de Salles vai de luzes às sombras: a casa da família Paiva iluminada, cheia de gente, alegre, tão musical e radiante; as janelas fechadas após a invasão dos agentes da Polícia do Exército, o quartel onde Rubens é morto, Eunice é interrogada e a filha é silenciada.

A escuridão toma os locais de alegria, substituindo-os pelas sombras de Hades, devorando o Deus Sol. São os militares que cegaram o país, mas eles agiram sozinhos?

Edinger (2006), ao descrever o processo da solutio na alquimia, cita que no mundo externo, um “[…] grupo pode atrair com facilidade a projeção do Si-mesmo e engolfar o individuo que sucumbir a ele” (EDINGER, 2006, p. 76). Por essa perspectiva, a ditadura trouxe algo das catacumbas, algo poderoso que habita nosso passado e levou milhares a apoiar a tortura – para essa gente, era importante matar os ‘inimigos’.

Os mecanismos geopolíticos agiram sobre os ventos do país: o apoio dos EUA ao golpe, o Marcartismo e o fantasma do comunismo. Tudo isso é uma justificativa, um elemento historiográfico para ampliar nosso horizonte. Mas gostaria de relembrá-los que, o filme de Salles, é sobre família.

A morte de Rubens destroça a vida das crianças, amigos e da sua esposa, Eunice. Porém, chamo atenção para um fato interessante no pré-golpe militar: em abril de 1964, 500 mil pessoas marcharam no centro de São Paulo para defenderem “[…] a família, a Pátria, a democracia, a Constituição e a religião” (CORDEIRO, 2021). Esse ato era chamado de Marcha da família com Deus pela liberdade, ou seja, para que os golpistas tomassem o poder, eles tiveram amplo apoio popular para dar o golpe em 31 de março, depondo o presidente João Goulart.

Dessa maneira, há um movimento bastante contraditório na direita brasileira que diz defender a família, mas mata pais, violenta mulheres e tortura crianças. Esse não é um elemento que passa, o passado não passa. O passado continua aqui. A sombra daqueles que não foram punidos, está ao lado (e no cerne do Estado brasileiro). Esses homens viveram tranquilamente, se vangloriando de terem torturado ‘subversivos’ para salvarem a pátria.

A história do nosso país só seguiu – eles saíram do poder, voltaram para seus quartéis e vestiram seus uniformes. Sempre foram covardes. Deixaram que os democratas assumissem o poder, como uma gentileza. Nunca foram punidos. O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra foi saudado pelo ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, como um dos heróis do país. Um torturador, um assassino de mulheres: Ustra. Dessa maneira, como não sabemos o que ocorreu com nossa história, só esquecemos.

Mas os fantasmas do passado estão aí: “O passado não é passado. O presente é assombrado pela dinâmica arquetípica que nos recorda que qualquer história não contada é um presente inconsciente. Um presente inconsciente é uma história que insistirá em ser contada e será derramada sobre nossas biografias” (HOLLIS, 2017, p. 41).

Do passado, vejo o futuro e do futuro, vejo o passado. Tendemos a repetir e repetir. Repetir até que algo aconteça, como uma grande explosão, uma luz que ilumine os porões da memória. Do lado deles, as explosões continuam. Eles estão aqui, tramando a morte de ministros, intelectuais e do chefe de Estado. Os patriotas, na verdade, odeiam o Brasil. E o que fazer? Em um trecho do filme, Eunice pergunta a um dos amigos de Rubens, o que ele havia feito para ser preso. A resposta, é que ele entregava cartas para familiares de exilados e mantinha contato com pessoas próximas da resistência popular.

Mesmo nas sombras, onde habitam os torturadores, habita a esperança. O que torna tudo mais curioso: “ainda estou aqui” não é só o título, como também a memória e o fantasma de Rubens que aguardou 21 anos para que sua certidão de óbito fosse entregue para Eunice – “ainda estou aqui” é dito, também, pelos militares que ameaçam novamente a soberania popular e a democracia.

Retomo a pergunta de Roque Tadeu Gui em seu artigo sobre 1964: “Estaríamos diante do assombramento dos tempos negros, a herança autoritária herdada dos anos de chumbo, que encontra nos eventos atuais um veio de escoamento da energia psíquica reprimida num complexo cultural, na sombra coletiva da nação?” (GUI, 2014). E deixo-a aberta, pois ela não tem resposta. 1964 ainda está aqui, todos estão. Não há garantia, é preciso dar um jeito nisso tudo. É preciso ouvir nossos fantasmas.

REFERÊNCIAS

CORDEIRO, Janaina Martins. A marcha da família com Deus pela liberdade em São Paulo: Diretas, participação política e golpe no Brasil, 1964. Revista de História (São Paulo), n. 180, p. 01-19, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rh/a/N3y4qtLG8XkgR3gKP9yvwBm/…. Acesso em: 21 de nov. 2024
EDINGER, Edward F. Anatomia da Psique. São Paulo: Cultrix, 2006
GUI, Roque Tadeu. 1964: a sombra de uma nação. Ensaio de psicologia analítica em Extensão. Disponível em: https://www.academia.edu/33367227/1964_A_Sombra_de_uma_Nação_Artigo_AJB_docx. Acesso em: 21 de nov. 2024
HOLLIS, James. Assombrações: Dissipando os fantasmas que dirigem nossas vidas. São Paulo: Paulus, 2017
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