Nina Cunha e Sílvio Lopes Peres, analistas do Instituto de Psicologia Analítica da Bahia, da Associação Junguiana do Brasil – AJB, coordenadores do Departamento de Envelhecimento Criativo.

Curatorial

Antonio Cícero (1945-2024), compositor, poeta, crítico literário, filósofo e escritor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras. Retirou-se de nosso convívio em 23 de outubro passado. Por decisão lúcida, do que lhe restava de lucidez. Retirou-se do teatro dos vivos para enturmar-se com os poetas que já se foram. Permanece na memória coletiva, com seus versos e filosofia. Escolheu a vida bem vivida e a morte digna. Para nós que seguimos, os coordenadores assinam o ensaio em homenagem ao poeta-filósofo, oferecendo-nos reflexões sobre a morte assistida.
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“[…] Que te disse a Poesia
Quando Vênus que luzia
No céu tão perto
(Tão longe da tua melancolia…)
Brilhou na tua agonia
De moribundo desperto?
[…] Temeste a morte, poeta?
Temeste a escarpa sombria
Que sob a tua agonia
Descia sem rumo certo?
Como sentiste o deserto
O deserto absoluto
O oceano absoluto
Imenso, sozinho, aberto?
[…] Sentiste angústia, poeta
Ou um espasmo de alegria […]?”
(Vinicius de Moraes, 1953)

TEMESTE A MORTE, POETA? QUE TE DISSE A POESIA?

A morte de Antonio Cícero na Suíça foi notícia no mundo inteiro. Poeta, filósofo, ensaísta e letrista de tantas canções que nos embalaram nas últimas quatro décadas, diagnosticado com Doença de Alzheimer, em processo degenerativo que já lhe causava sofrimento, uma vez que, não só estava ciente da evolução desta doença, como já notava comprometimento de suas funções cognitivas. O pedido de morte assistida de Antonio Cícero, aos 79 anos, suscita questões relativas ao sofrimento inerente às doenças degenerativas, à qualidade de vida do indivíduo, à sua percepção sobre ele mesmo e seu entorno, ao princípio da autonomia e à legitimidade da sua dor. (KOVÁCS, 2003)

No século XXI, morrer é visto como um tabu, um fracasso da eterna luta que Sísifo travou com os deuses… Jung nos ensina que o processo de desenvolvimento humano se direciona unicamente para um objetivo: a sua finitude. Para Jung, o ciclo da vida é “um processo energético, como qualquer outro, mas em princípio, todo processo energético é irreversível e, por isto, é orientado univocamente para um objetivo. E este objetivo é o estado de repouso” (JUNG, 2013, par. 358).

Portanto, para falar de morte, é preciso falar sobre vida. Estes são opostos e não existem um sem o outro. “A morte nos é conhecida simplesmente como um fim e nada mais. É o ponto final que se coloca muitas vezes antes mesmo de encerrar-se o período, e depois dela só existem recordações e efeitos subsequentes, nos outros” (JUNG, 2013, par. 357). Ao negarmos a morte, negamos também a plenitude da vida. “Nossa consciência recusa-se a aceitar esta verdade inegável.” (JUNG, 2013, par. 360).

Com os avanços da medicina, assistimos à descoberta da cura de várias doenças e, consequentemente, ao prolongamento da vida, e a recusa diante desta verdade inegável torna-se ainda maior. O movimento de Cuidados Paliativos nos traz a possibilidade de repensar essa relação morte e vida, e a (re)humanização do morrer, em oposição à ideia da morte como algo que pode ou deve ser evitado de todas as formas. A morte é vista como parte do processo da vida e, em caso de doença, o foco deve ser a qualidade da vida e o bem-estar do indivíduo, em especial no caso de doenças em que a cura não é possível.

Maria Julia Kóvacs (2003) nos traz uma reflexão sobre três pontos importantes acerca do tema: “Tem a pessoa o direito de decidir sobre sua própria morte, buscando dignidade? Pode-se planejar a própria morte? Os profissionais de saúde, que têm o dever de cuidar das necessidades dos pacientes, podem atender um pedido para morrer?

“Existirmos a que será que se destina” […] “apenas a matéria vida era tão fina” […] (Caetano Veloso, 1982)
A pessoa é o fundamento de toda a reflexão da bioética. (PESSINI E BARCHIFONTAINE apud KÓVACS, 1994). Se levarmos em conta apenas a sacralidade, somente a vida em si mesma importa, sem que a pessoa e sua qualidade de vida sejam priorizadas. É preciso que aprofundemos a discussão sobre o direito do exercício da decisão sobre a própria vida. A eutanásia, a boa morte (no grego eu – bom e thanatos – morte) é um dos temas mais polêmicos da bioética nos séculos XX e XXI.

Na antiguidade greco-romana, no paganismo, nos ensinam os filósofos antigos, a morte tinha seu lugar. As casas eram construídas ao lado dos túmulos e havia uma relação próxima entre a vida e a morte. O homem (húmus) era pó e ao pó retornava. O direito de morrer era reconhecido, os doentes desesperançados podiam pôr fim a uma vida de sofrimentos. Ainda na Idade Média, guerreiros feridos mortalmente tinham direito ao uso do punhal, reconhecido como ato misericordioso, a fim de evitar seu sofrimento. Mas, então, a vida passou a ser considerada um dom de Deus, e o ser humano passou a ser privado deste direito e a morte passou a ser interdita (ARIÈS, 2003).

Montaigne, no ensaio “De como filosofar é aprender a morrer”, traz a importância do exercício filosófico sobre a existência e a morte: “acho-me sempre, e quanto posso, preparado para essa ocorrência. Ela se mistura sem cessar a meu pensamento, nela se grava. Na medida do possível andemos sempre de botas e prontos para partir, e em particular, não tenhamos negócios a tratar senão com nós mesmos.” (MONTAIGNE, 2016, p. 127).
No caso de Antonio Cícero, na carta que deixou, ele explicita a perda progressiva das suas capacidades mentais, altamente necessárias para sua atividade laboral e para tudo o que sempre deu significado à sua vida:

” , – íç á. é á. . (…) í, ê, ã ç á . ã . ã , . , ú í çã. (…) .”

Através dos relatos da família e dos amigos, sabemos que Antonio Cícero viveu de maneira plena, digna e coerente com seus valores e crenças, e morreu da mesma maneira. Vida e Morte: onde acaba uma e começa a outra? Até quando Cícero continuaria vivo não tendo passado pelo procedimento de morte assistida? Quantas pessoas seguem vivas não estando vivas? Nem todos têm condições financeiras de passar pelo procedimento, assim como a maioria de nós ainda não se encontra em condições de refletir acerca deste assunto.

Byington formula o seguinte pensamento sobre os arquétipos da vida e da morte, baseando-se na análise das proposições de Freud, Sabina Spielrein e Jung:

(ã) “[…] çõ ó . […] çã é, , . , í çã ã , à çã á á. á á, , çã . , , ã á, …” (, )

Por fim, Horta (1999) nos traz as seguintes reflexões: “Será que o mais nobre propósito da medicina não seria o de proporcionar uma morte livre da dor e do sofrimento? Neste ponto de vista, a eutanásia e o suicídio assistido podem ser vistos como mortes misericordiosas”. Pensamos que a morte de Antonio Cícero reforça a necessidade da discussão da morte assistida no Brasil. Em tempos de pautas moralistas, sabemos que este é um debate difícil, porém necessário. Ao poeta, “a imensidão e o mar”:

“Ah, se eu fosse marinheiro
Seria doce o meu lar
Não só o Rio de Janeiro
A imensidão e o mar
[…]
Não buscaria conforto
Nem juntaria dinheiro
Um amor em cada porto
Ah, se eu fosse marinheiro”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARIÈS, Philippe. O homem diante da Morte. Vol. II. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
BYINGTON, Carlos A. O arquétipo da vida e da morte. Um estudo da Psicologia Simbólica. Junguiana v.37-1, p.175-200.
CÍCERO, ANTÔNIO declama “O poeta Hart Crane suicida-se no mar”, de Vinicius de Moraes: disponível em https://youtu.be/Cx4FBxrW9Lc?si=lO1qJWuXhKNK5sT- acesso em 02/11/24
HORTA, M. P. (1999). Eutanásia. Problemas éticos da morte e do morrer. Bioética, 7(1), 27-34.
JUNG, Carl. G. A Natureza da Psique. Ed. Vozes. Petrópolis, RJ. 2013.
KÓVACS, M. J. Bioética nas questões da vida e da morte: disponível em <https://doi.org/10.1590/S0103-65642003000200008> acesso em 02/11/24
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Edição integral. Tradução e notas de Sérgio Milliet. São Paulo: 34, 2016.