19 de junho de 2024

por Mônica Aguiar, psicóloga, analista junguiana pelo Instituto de Psicologia Analítica da Bahia, vinculado à Associação Junguiana do Brasil – AJB e a IAAP – International Association for Analytical Psychology. Juíza Federal Aposentada. Ex-promotora de Justiça da Bahia.

Até às 15:46 do dia 16 de junho de 2024, o site da Câmara dos Deputados, em sua enquete realizada sobre o conteúdo do PL 1904/2024, indicava que 12% das pessoas que nela votaram concordam, totalmente, com o texto apresentado pelo Deputado Sóstenes Cavalcante filiado ao PL – Partido Liberal, diretório do Rio de Janeiro.

Ao resumir as razões desses votos, o endereço eletrônico da Câmara dos Deputados trazia, naquele mesmo dia e horário, a seguinte opinião de votantes: “Impede assassinato de bebês/fetos por causa de um crime não cometido por eles”.

A visão assim simplificada bem demonstra o afastamento das razões pelas quais o legislador, desde 1940, decidiu pela prevalência da vida nascida quando em colisão com uma vida por nascer. Foi assim, por exemplo, que autorizou o abortamento nos casos em que a gravidez traga riscos para a vida da gestante. (1)

Não somente por esse fundamento, mas também para que a vítima do crime de estupro que acabasse por engravidar, além de guardar em sua memória a grave violação que sofreu, não tivesse que suportar o fardo de carregar em seu ventre o fruto dessa violência e de ter que conviver com um filho não desejado e que a todo momento a relembraria da violência sofrida.

Agora estamos vivenciando uma época em que essa escolha não somente é questionada, como também é confrontada com a hipótese exatamente ao inverso. Distanciamo-nos, mais ainda, do arquétipo da totalidade que traz a completude e nos colocamos em nichos opostos e adversários, em uma contenda na qual todos perdemos.

Estamos admitindo que a vida por nascer importa mais do que a vida nascida. Há como se fosse um apagamento da violência sexual e uma empatia não com a mãe gestante involuntária, mas apenas com o feto. Poder-se-ia dizer que não se percebe a criança gestante como vítima, mas somente o feto. Ou, na melhor das hipóteses, que há duas vítimas em que uma deve ser protegida – o feto – e a outra deve ser apenada como se responsável fosse por ter sido violada.

Argumento para essa hierarquização foi exteriorizado em redes sociais por famoso ator que considera que o “assassinato” do feto não desfaz o estupro e o trauma que ele carrega. Daí concluir que, quem não quiser criar o filho pode entregá-lo para adoção, haja vista que a fila de pessoas querendo adotar um bebê é muito maior do que a oferta de crianças para serem adotadas. (2)

Esse entendimento, parece surgir do lugar de um complexo cultural do machismo que tem sido socialmente amolado como uma faca e pelo qual se demoniza a vítima do estupro. Seja quando se indaga sobre as atitudes da estuprada anteriores ao ato, seja quando se pergunta sobre a roupa que ela usava, seja porque se recrimina a escolha dela de se aproximar do agressor.

Ademais, a função do aborto não é a de apagar o crime, mas o de minimizar o trauma e o de proteger o que possa restar de infância na criança violada.

Embora, no caso da criança abusada, aquelas ilações não sejam pertinentes, o fato é que há uma contaminação pela via do complexo do machismo que lança um véu sobre a consciência coletiva que não dá conta, de modo neurótico ou psicopático, de enxergar a menina como vítima, até porque na atualização do arquétipo patriarcal que discrimina e hierarquiza, a mulher é culturalmente vista como inferior ao homem.

O próprio parlamentar proponente do referido projeto de lei, após se assenhorar da repercussão negativa decorrente da aprovação do regime de urgência no processo legislativo, reconheceu que a votação em plenário da Câmara pode se dar após as eleições municipais, postergando, assim, a apreciação do projeto, e indo além ao afirmar “O governo está dando corda para as feministas nesse assunto, elas estão desesperadas. Eu estou muito calmo, deixa elas sapatearem”, o que bem exemplifica a afirmação contida no parágrafo anterior. (3)

Para podermos dialogar com alteridade debatendo com opiniões as mais diversas, há sempre que se tentar entender os motivos pelos quais cada espectro sociocultural e político defende valores tão diferentes.

No caso desse projeto de lei, quando o argumento que parecia invencível foi trazido a luz por inúmeros perfis nas redes sociais encampado por vozes de autoridade como a do Ministro da Justiça e Direitos Humanos que declarou “É difícil acreditar que a sociedade brasileira, com os inúmeros problemas que tem, está nesse momento discutindo (…) se um estuprador pode ser considerado menos criminoso que uma mulher estuprada” (4), de logo surgiu a solução do proponente do projeto no sentido de que a assimetria assim denunciada poderia ser resolvida com o aumento de pena para o estuprador.

Ou seja, mantém-se a pena para a vítima do estupro e para o médico que realizar a assistolia fetal, como se deles pudesse ser a responsabilidade pela gravidez indesejada.

Por outro lado, não podemos deixar de apontar que o projeto de lei de que se cuida foi apresentado em 17/05/2024 mesmo dia em que o Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, suspendera a resolução 2.378/2024, do Conselho Federal de Medicina, que “regulamenta o ato médico de assistolia fetal, para interrupção da gravidez, nos casos de aborto previsto em lei oriundos de estupro” e proibia a referida técnica quando houvesse probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas.

Como o fundamento daquela decisão foi o de que “o ordenamento penal não estabelece expressamente quaisquer limitações circunstanciais, procedimentais ou temporais para a realização do chamado aborto legal, cuja juridicidade, presentes tais pressupostos, e em linha de princípio, estará plenamente sancionada”, a solução encontrada pelo parlamentar proponente foi mudar a legislação, como ele próprio declarou ao sugerir a possibilidade de desistir do projeto, caso houvesse pelo requerente da ação no Supremo Tribunal Federal – o PSOL Partido Socialismo e Liberdade – a desistência da ação (5)

Novamente, o que se percebe é uma empatia seletiva que desguarnece a vítima primeira e hierarquiza, agora de modo inverso, de forma que a criança ainda não nascida é sujeito de proteção em detrimento da criança já existente.

Com essa escolha, estamos nos afastando do ditado constitucional (6) que coloca a criança como sujeito de direitos que deve ser protegida pela família, estado e sociedade, uma vez que a norma constitucional se dirige às pessoas cuja personalidade se inicia do nascimento com vida. Além disso, importante ressaltar, que a escolha pela manutenção da vida intrauterina está se baseando tão somente no critério biológico, daí se repetir à exaustão que o feto após 22 semanas já tem possibilidade de vida.

Ou seja, a família não conseguiu proteger, ao permitir e às vezes tolerar a violência. As estatísticas demonstram que 95,4% dos estupradores são homens e 82,5%, conhecidos da vítima sendo que 40,8% eram pais ou padrastos; 37,2% irmãos, primos ou outro parente e 8,7% avós (7). Além de não proteger a criança, o estupro se dá na maior parte das vezes no seio da própria família.

O Estado, pelo menos na esfera legislativa que a protegia, desde a edição do Código Penal de 1940, agora, ao contrário, a quer punir.

Resta a nós, a sociedade, último guardião constitucional a quem compete colocar a salvo a criança e a adolescente de toda forma de violência e crueldade, garantir essa proteção. Mas nos encontramos, ainda que parcialmente, conforme estatística indicada no início deste trabalho, permeados por complexos culturais intensos, como a misoginia, o machismo e o poder.

E, mais do que isso, submersos em uma empatia enviesada que afasta a menina do lugar de vítima, a invisibiliza e decide com olhos naquele cuja humanidade é, ainda, apenas biológica.


REFERÊNCIAS:

(1) Decreto-Lei no 2.848, de 7 de Dezembro de 1940, art.128.
(2) https://www.jusbrasil.com.br/…/numero-de…/134630963…
(3) https://oglobo.globo.com/…/apos-repercussao-negativa…
(4) G1. Instagram. Acesso em 16/06/2024.
(5) https://noticias.uol.com.br/…/autor-do-pl-do-aborto-diz…
(6) CF Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(7) https://fontesegura.forumseguranca.org.br/violencia…/…

Foto: Jorge Leão/BdF