Editorial:

A calamidade produzida pelas chuvas no Rio Grande do Sul esteve em destaque em nosso cotidiano no último mês. Fomos todos atingidos: os que perderam a vida, os que sobreviveram, os que tudo perderam, os desabrigados, os adoecidos… e aqueles que, ainda que não tenham sido diretamente afetados, são testemunhas da catástrofe. O acontecimento traz à nossa consciência a importância de pensar sobre nossa responsabilidade na ocorrência desses fenômenos extremos, ao mesmo tempo que nos convoca à solidariedade irmã com nossos concidadãos do Sul. Esperança e reconstrução é o lema do momento. O ensaio a seguir fala sobre memória, responsabilidade e esperança.


2 de junho de 2024

por Roque Tadeu Gui, psicólogo, analista do Instituto Junguiano de Brasília.

 

E as chuvas continuaram...

Dentre todas as catástrofes que temos testemunhado, essa, a do Rio Grande do Sul, nos impressionou de maneira especial. A permanente cobertura televisiva, com as imagens de destruição, impactou fortemente nossas consciências.

É verdade que todas as calamidades nos impressionam. Cada uma delas traz consigo uma imagem de fim de mundo. O anúncio de colapso de uma civilização. E somos sensíveis às imagens do Fim. Mas a memória, ou a perda dela, nos protege.

Quem se lembra do Vale da Morte em Cubatão (SP), a poluição mortal da década de 1980; ou da contaminação por Césio 137 em Goiânia (GO), em 1987; ou, ainda do vazamento de petróleo na Baía de Guanabara (RJ), em 2000? O acidente nuclear de Fukushima, em 2011? O rompimento da barragem de mineração em Mariana (MG), em 2015, seguido pelo da barragem de mineração em Brumadinho (MG), em 2019? Não é porque foram “esquecidos” que não continuam a produzir consequências sobre as populações atingidas.

São inúmeros os desastres que compõem nossa história de catástrofes. Em maior ou menor extensão, todos nós tivemos notícia desses desastres. E todos nós, em maior ou menor grau, nos “esquecemos” desses acontecimentos. Melhor, talvez, seja dizer, “desmemoriamos” esses fatos. A desmemória não é um completo esquecimento, ou repressão de uma sofrida lembrança. É, antes, uma proteção contra o sofrimento causado pela memória.

Podemos pensar que a desmemória é um registro que mantém a lembrança esmaecida, mas pronta para emergir à plena consciência. Ela fica ali, adormecida, latente, talvez disponível em nossos sonhos… A desmemória desses eventos cataclísmicos parece funcionar assim. Não viveríamos bem se tivéssemos a todo momento acesso às imagens da calamidade. Talvez seja por isso que grandes acontecimentos coletivos, sobretudo os catastróficos,  acabam por ter um dia de rememoração. Para que não corramos o risco da desmemória virar esquecimento. Para que possamos continuar a viver.

A rememoração é uma catarse. No Brasil, fala-se agora em se construir um memorial para as vítimas da pandemia do SarsCOV-2 e suas variantes. Não costumamos erigir memoriais de nossas desgraças. No fundo, desejaríamos esquecê-las, soterrá-las no subsolo de nossas almas.

A defesa civil classifica os desastres naturais em vários tipos: geológicos, hidrológicos, meteorológicos, climatológicos, biológicos, tecnológicos (https://brasilescola.uol.com.br/…/desastres-ambientais.htm). Embora vários desses desastres independam da ação humana (com exceção do último, pois que somente o homem faz tecnologia), quase todos podem ser atenuados ou agravados por ela.

O desastre nos lembra da fragilidade de nossa condição civilizatória. Criamos cultura, desenvolvemos ciência e tecnologia para nos adaptarmos às condições de nosso planeta. Interferimos na natureza porque é inerente à nossa condição de animais frágeis. Necessitamos agir transformando o ambiente no qual vivemos.

Cultura e natureza se friccionam e não há como evitar radicalmente essa fricção. Não somos seres absolutamente naturais. Nossa sobrevivência depende de certo grau de transformação do ambiente em que vivemos. E esse é o nosso dilema eco-ético-político.

Nos dias atuais, duas imagens de cidades nos chocam: a de Gaza, no conflito entre o Hamas e Israel, no Oriente Médio, com suas edificações e infraestrutura completamente destruídas pela ação deliberada de líderes de uma geopolítica desastrosa, e a de Porto Alegre, no Brasil, com suas construções históricas submersas pelas águas da enchente do Rio Guaiba, num desastre hidrológico de proporções diluvianas. Duas cidades dentre tantas outras espalhadas, e devastadas, no mundo, por cataclismas e conflitos.

Nos desastres geopolíticos é mais fácil identificar a mão humana em sua produção; afinal, a decisão de sequestrar ou bombardear civis é claramente uma deliberação política. Nos desastres climatológicos, embora se possa atribuí-los às forças inclementes da natureza, fica também um espaço para se discutir a responsabilidade humana no acontecimento ou agravamento da situação.

Acompanhamos pelos jornais: a chuva torrencial e contínua sobre o Rio Grande do Sul deve-se às mudanças climáticas globais, com a implicação humana no aquecimento planetário. As medidas de contenção das enchentes e minimização dos impactos do desastre hidrológico são igualmente dependentes da governança política. Há de se discriminar causas naturais e responsabilidades humanas.

Contudo, na tragédia, para além de nossa capacidade destrutiva, podemos encontrar vestígios da capacidade construtiva do ser humano. Em algum momento, as edificações hoje destruídas foram erguidas pela engenhosidade humana e essa capacidade construtiva aponta para a esperança de que as cidades possam ser restauradas.

No plano das relações sociais, observamos a solidariedade expressiva dos que acorreram a salvar vidas dos escombros e das enchentes, seja no resgate de náufragos e no provimento de recursos para a sobrevivência dos desalojados, verdadeiros exilados climáticos, seja na disposição das instâncias governamentais para dar suporte à reconstrução de todo um Estado. Sinais ineludíveis da capacidade civilizatória dos humanos.

E talvez a imagem emblemática da resiliência da vida, que teima em seguir adiante, seja a de um cavalo equilibrando-se sobre o telhado de uma casa totalmente submersa, horas infinitas sob o sol abrasador, aguardando seu resgate. Que veio!

Imagem: Retrato do Caramelo, acrílico sobre tela, 56 x 47 cm, do pintor argentino José Acuña – @acuniart – leiloado por R$ 130 mil na ação “Martelo Solidário” –  para arrecadar doações para as vítimas das chuvas no Rio Grande do Sul.