por Sandra Souza, psicóloga clínica e organizacional, psicopedagoga e analista em formação pelo IJUSP – Instituto Junguiano de São Paulo. Atualmente pesquisa temas relacionados à inclusão e diversidade.

Curatorial:

“Quando a saúde mental se fragiliza no trabalho, não se trata apenas de burnout ou estresse — trata-se da captura do imaginário, da colonização do desejo, do aprisionamento simbólico, e isto tudo potencializado pela força do coletivo”. Essa frase, extraída do ensaio de Sandra Souza, sintetiza o desafio da Psicologia Analítica para enfrentar o seu distanciamento da vida de milhões de pessoas, permeada pela realidade do trabalho, fonte de subsistência, de estresse, mas também de possibilidade criativa. A autora nos lembra, com James Hillman, que “o inconsciente não está mais onde estava na época de Freud e Jung. Devemos buscá-lo onde nos sentimos mais oprimidos.” E o trabalho, muitas vezes, torna-se uma fonte de sofrimento. É aí onde nós, psicólogos analíticos, precisamos estar.


No final de 2024, o Brasil atingiu um marco histórico: 39,2 milhões de pessoas com empregos formais no setor privado. Considerando uma população economicamente ativa de mais de 100 milhões, estamos diante de um grande contingente humano sujeito a normas, metas, controles e vigilâncias. Neste ambiente onde a linguagem é a do pragmatismo de resultados, há também um imenso campo simbólico no qual a alma coletiva está adoecida e adoecendo a todos aqueles que a tocam para além organizações.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) destacou que ambientes de trabalho insalubres, o que inclui estigma, discriminação e exposição a riscos como assédio e outras más condições de trabalho, podem representar riscos significativos à saúde mental e à qualidade de vida geral.

A recente atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR1), que incorpora a obrigatoriedade de avaliação de riscos psicossociais nos ambientes de trabalho, dada a sua relevância sob o ponto de vista psicológico e político de amplo alcance, deveria ter sido motivo de atenção, análise e celebração por parte da comunidade junguiana. No entanto, diante de outras pautas, que no momento geram maior engajamento e fascínio, esse tema não nos mobilizou.

Por que, diante de uma conquista política e técnica tão relevante — que passa a reconhecer legalmente a psique como instância objetiva e a organização do trabalho como fator gerador de sofrimento mental — não houve manifestos, reflexões ou debates significativos na comunidade junguiana?

Em seu texto “As complicações da Psicologia Americana”, de 1930, que não é nada agradável de se ler, dado os vieses evidentes e característicos de muitos intelectuais europeus de sua época, Jung nos fala sobre os perigos de uma cultura obcecada pelo ideal do herói, que transforma indivíduos em engrenagens de desempenho.

“Muitas vezes ao pesquisar no consciente ou inconsciente de meus pacientes e alunos americanos encontrei algo que só poderia descrever como uma espécie de ideal heroico. Seu esforço idealista visa extrair o melhor de cada pessoa, e quando encontram uma pessoa boa eles a apoiam naturalmente e exigem dela tanto que corre o perigo de entrar em colapso de tanto esforço, sucesso e triunfo. (…) Se encontra isto na fábrica onde o sistema procura ansiosamente colocar o melhor homem no lugar certo (…).” (Jung, OC 10/3, §976)

A reflexão de Jung nos leva a ver, o que já sabemos pela prática clínica e pelos indicadores que medem a saúde mental dos trabalhadores: que numa sociedade que exige superação e excelência de suas “boas pessoas”, o risco é que estas, impelidas ao sacrifício, sucumbam sob o peso das projeções coletivas.

O ambiente do trabalho — impregnado por ideais de produtividade e otimismo performático — tornou-se o palco para que a imagem arquetípica do herói seja encenada e atualizada com graus cada vez mais elevados de “eficiência” e “crescimento”.

Líderes carismáticos são idolatrados até o esgotamento – ou o que é pior, se tornam assessores de governo; os funcionários são estimulados a dar “tudo de si”, muitas vezes até não lhes restar mais nada, exceto sua persona rígida, que tal uma armadura o impele à reproduções de seu comportamento heroico nas outras esferas de sua vida. Aí então, os recebemos, todos adoecidos, em nossas clínicas. Mas onde está o nosso olhar e por quais territórios vagueiam a nossa alma enquanto o trabalho adoece a psiquê?

James Hillman nos diz que “A recuperação de um senso de poder da sociedade […] requer mais do que uma terapia de ´potencialização´ pessoal” (Hillman, 2001, p.26). E mais adiante: “A sensibilização do sentimento e do corpo […] deixa intocado o âmago desse mal-estar. Esse âmago é coletivo” (Hillman, 2001, p.27). Quando a saúde mental se fragiliza no trabalho, não se trata apenas de burnout ou estresse — trata-se da captura do imaginário, da colonização do desejo, do aprisionamento simbólico, e isto tudo potencializado pela força do coletivo.

É preciso reconhecer o distanciamento da Psicologia Analítica da concretude da vida de milhões de pessoas, neste caso, no que tange ao ambiente de trabalho que as envolve na maior parte de suas horas de vigília. De onde vem a recusa em olhar para a arena onde o sofrimento coletivo se dá de forma mais cotidiana, sistemática e naturalizada? Já sabemos que “o inconsciente não está mais onde estava na época de Freud e Jung. Devemos buscá-lo onde nos sentimos mais oprimidos.”, como nos lembra Gustavo Barcelos. (Hillman, 2001, pg 9)

Como podemos ignorar que a cultura das organizações modela as subjetividades em massa, que seu discurso atua diretamente sobre o inconsciente coletivo? Olhar para estas questões parece mais do que um problema clínico, trata-se de um desafio ético.

Ao nos abstermos de entrar nesse território pragmático, árido e complexo, corremos o risco de nos tornarmos por um lado, cúmplices de uma psicologia alienada que conforta elites e, por outro lado, parceiros de uma psicologia “hypada” que surfa reluzente no rabo do cometa de narrativas que fragmentam o ser humano em identidades fixas e impermeáveis ao Outro, e se utilizam das vozes de grupos minorizados, para gerar nichos atraentes aos mais variados interesses políticos e mercadológicos.

A atualização da NR1 deve ser um chamado à ação, uma convocação à escuta e à contribuição técnica de todas as psicologias. Para a Psicologia Analítica, representa a chance de fortalecer seu papel no mundo contemporâneo, reforçando a sua vocação para dialogar com vários campos do saber, garantindo a sua profundidade e complexidade.

Talvez o mundo do trabalho nos confronte com a sombra da própria Psicologia Analítica: a sua vocação histórica à introspecção individualizada, ao seu viés eurocêntrico, ao seu afastamento do político e do coletivo.

O fato é que a alma brasileira que vive e pulsa na coletividade e é também, mas não só, mestiça, urbana, trabalhadora, sofrida e resiliente, está adoecida e pede mais. Pede que façamos análise onde ela se perde, e onde talvez possa ser reencontrada.

Se queremos manter a relevância da Psicologia Analítica, mesmo após os 150 anos do nascimento de Jung, não podemos mais silenciar diante de marcos políticos e legais como este. Precisamos falar sobre o que adoece a alma no trabalho e o que isso diz sobre nossa própria recusa em ver tal sofrimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Jung, C.G. (2011). Civilização em Transição. Obras Completas, Volume 10/3, Petrópolis: Vozes.

Hillman, J. (2001). Tipos de Poder, Um guia para o Uso Inteligente nos Negócios.

https://agenciagov.ebc.com.br/…/em-2023-brasil-bate

https://www.paho.org/…/28-9-2022-oms-e-oit-fazem

https://www.paho.org/…/dia-mundial-da-saude-mental-2024

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