por Sílvio Lopes Peres – psicólogo e analista junguiano, do IJUSP – Instituto Junguiano de São Paulo, filiado à Associação Junguiana do Brasil – AJB e à International Association for Analytical Psychology (IAAP).
Curatorial:
Um Papa está morto. Viva o Papa! Ao longo de nossa existência provavelmente teremos vivido, e os que ainda não viveram certamente o farão, a perda de um Papa. Homens revestidos de autoridade espiritual que, inspirados pelo Espírito Santo, segundo a tradição da Igreja Católica, buscam representar os princípios da caridade cristã, em um mundo conturbado por guerras, desigualdades e miséria. A morte de Francisco é reconhecida por todos, de diferentes universos teológicos, e matizes político-ideológicos, como uma grande perda. Uma voz que ressoou em nome dos oprimidos, dos famintos, dos desterrados. Apenas uma voz, mas com o poder de inspirar outras vozes. Outros homens assumirão a missão. Igualmente inspirados, igualmente limitados. Silvio, nosso ensaísta, nos traz, numa alegoria, a necessidade de vivência do sagrado, para uma nova atitude cultural e novas visões sobre a vida, buscada incansavelmente pelo homem-Papa Francisco.
“As três línguas”, conto dos irmãos Grimm, guarda uma preciosidade para os nossos dias.
Eis o conto:
O filho único de um conde suíço não conseguia aprender nada. Por mais que o pai tentasse ensinar-lhe alguma coisa, ele não aprendia. Então, o velho decide enviá-lo a famosos professores.
Com eles, aprende a língua dos cães, dos pássaros e dos sapos. Furiosamente frustrado, o pai ordena aos seus servos a tirar-lhe a vida na floresta. Mas, não conseguindo cumprir a ordem cruel, deixaram-no partir livre.
Sua capacidade de entender as línguas dos animais, porém, o ajuda a solucionar o problema antigo, com cães selvagens que ocupavam a torre do castelo de um povo. Todos que tentaram fazer com que os cães parassem de uivar e latir, acabavam devorados.
Na primeira tentativa, contudo, o rapaz fala com eles e ouve deles: “Estamos enfeitiçados e obrigados a guardar um tesouro de ouro, escondido embaixo da torre. Não sairemos daqui até que alguém o desenterre. Só nós sabemos como fazer isso”.
Seguindo as orientações dos cães, ele traz a arca cheia de ouro e a entrega ao dono do castelo. Desde então, os cães desapareceram e a cidade ficou livre do sofrimento.
O jovem decide ir para Roma. Na viagem, ele ouve os sapos coaxando e fica preocupado e triste com o que ouviu. Ao chegar lá, o papa acabara de morrer. Os cardeais estão em “grande dúvida” sobre quem deveria suceder ao sumo pontífice. Decidiram aguardar por um “milagre”.
Então, o jovem entrou no templo e “imediatamente, duas pombas muito brancas desceram do teto e pousaram em seus ombros. O clero reconheceu nisso um sinal enviado pelo céu e, na mesma hora, perguntaram ao rapaz se queria ser papa. Ele hesitou; mas as pombas disseram-lhe que podia aceitar e ele, por fim, concordou.
Assim sendo, o rapaz foi ungido e consagrado, e com isso, se realizou o que ele ouviu os sapos dizerem no caminho e que tanto o perturbara, ou seja, que ele deveria tornar-se papa.
Então, o rapaz teve de rezar a missa solene, mas não sabia uma única palavra. Foram as duas pombas que pousaram em seus ombros que lhe sussurraram o que dizer”, registrou Clarissa Pinkola Estés (Contos dos irmãos Grimm. Rio de Janeiro: Rocco, 2005, p. 79).
Os contos de fadas são sonhos arquetípicos. A cultura dominante e de cada um de nós não os compreende. Mas, têm um fascínio e são relevantes para todos nós. Tal como o conde, consideramos que só podemos aprender, de verdade, através da racionalidade dos livros e mestres.
Somos incapazes de reconhecer o estado de inflação psíquica a que essa fantasia nos leva, a ponto de desprezar a imaginação da nossa criança interior, tornando-nos violentos e desarmoniosos.
Nosso autoconhecimento se dá quando nos deixamos ser envolvidos pelo que vem do inconsciente, do instinto. Precisamos resgatar essa dimensão psicológica do sagrado presente na sabedoria dos contos de fadas, nos sonhos, na Bíblia, nos arquétipos, isto é, além do mundo pessoal, já conhecido, “comprovado”.
Desde o Paleolítico em diante, o “poder de cura” dos sacerdotes está no “ouvir e falar” com os animais/deuses. O animal é a conexão com a linguagem espiritual, teológica, para que o “tesouro precioso” ilumine a todos com o “mistério”.
O sentido psicológico do conto “As três línguas” está no momento de despedida do Papa Francisco, que parece ter nos conectado com o espírito das profundezas e a escolha de um substituto, quiçá, tão ou mais capaz de traduzir a linguagem da alma em termos compatíveis com a cultura da nossa época, como alguém que pode nos ajudar, com segurança, a nos relacionar com o inconsciente, como se espera do arquétipo de um sumo sacerdote.
Alguém que “ouve” e vivencia o significado do sagrado, com o fim de podermos desenvolver uma nova atitude cultural e novas visões de vida.
Foto: Franciscus – Jorge Mario Bergoglio (13.III.2013 – 21.IV.2025)
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