por Vicente Baron Mussi, psicoterapeuta junguiano, supervisor clínico, mestre em Psicologia pela UFPR, professor e pesquisador da interseccionalidade entre Psicologia Analítica e Política.

Curatorial:

Nosso tempo carece de obras de formação sentimental que dialoguem com a sensibilidade dos adolescentes, ao mesmo tempo em que a estimulem em direção à alteridade. Adolescência, produção cinematográfica que tem ocupado um espaço relevante de reflexão e debate sobre a masculinidade e suas vicissitudes, é um artefato cultural comprometido com a análise trágica do que significa ser adolescente na contemporaneidade. O ensaio de Vicente Baron Mussi nos desafia a refletir sobre as possibilidades de um desenvolvimento ético para a juventude de hoje.


Adolescência, a minissérie recém-lançada pela Netflix e que, em poucas semanas, já está entre as mais vistas da história da plataforma, tem mobilizado afetos e reflexões entre pais, profissionais do Direito, da Psicologia, da Educação e muitos outros.

Não parece ser à toa, a produção é de fato uma obra-prima cinematográfica, dizem os críticos de cinema, mas também uma obra-prima psicológica, pela sua natureza profunda e complexa.

Nesses últimos dias, li um par de análises a respeito e me surpreende o quanto a minissérie conseguiu capturar seus espectadores em diferentes temas, personagens, diálogos, comportamentos. É como se houvesse uma cena para cada complexo ideoafetivo (1). É como se cada episódio conversasse com um aspecto diferente da psique, a depender, é claro, da história individual de cada um, mas também do contexto cultural.

Masculinidade tóxica, misoginia, incels, redes sociais, justiça, escola, psicologia, paternidade, feminismo. Talvez o que menos a série aborde seja o tema da adolescência. Ao mesmo tempo, é justamente tal tema que se faz presente como objeto depositário de todas essas projeções.

Seria a adolescência uma espécie de receptáculo de sombra coletiva? Seria o adolescente aquele que performa menos uma individualidade precariamente construída e mais uma coletividade massificada que carrega em si aquilo que o mundo dos adultos não quer ver?

Jamie é um menino branco, de classe média, cisgênero, possivelmente heterossexual. Esse é um recorte muito específico que é importante considerar em qualquer tentativa de análise de Adolescência. Contudo, assim como Jamie, boa parte da adolescência, seja ela branca ou negra, cis ou trans, de classes mais baixas ou altas e com diferentes orientações sexuais, está nas redes sociais sendo bombardeada por conteúdos que não passam por qualquer tipo de filtragem, além de serem organizados por algoritmos que induzem e promovem o ódio, a violência, a sexualização precoce e a misoginia (Fisher, 2023).

Como a minissérie dá a entender, Jamie e toda a escola foram expostos a conteúdos da “manosfera”(2), mais especificamente da comunidade dos incels: os autointitulados celibatários involuntários, homens que acreditam não serem objeto de desejo sexual das mulheres que lhes atraem, mas que teriam uma obrigação sexual para com eles.

A própria lógica de funcionamento interno desses grupos exclusivamente masculinos já pressupõe a repressão forçada de tudo aquilo que culturalmente é identificado como feminino.

Como sabemos, tudo que é reprimido retorna como sintoma, numa tentativa de se tornar consciente e ser integrado na psique do indivíduo, o que tem relação com seu processo de individuação. Cabe-nos identificar, portanto, o que está reprimido na psique desses grupos. E, ainda, o que está reprimido em Jamie?

Vamos olhar psicodinamicamente para o comportamento de Jamie? Com uma baixa autoestima, se vendo como um menino feio por quem as garotas não vão se interessar, Jamie busca maneiras de conseguir alguma conexão com o sexo oposto, alguma brecha que lhe permita viver algo do campo do erótico.

Atormentado pela falta de repertório com as meninas, acaba por utilizar de uma estratégia desse mundo masculinista para essa investida. Convida Katie para sair num momento de fragilidade emocional dela. Segundo esse universo misógino, esse contexto aumenta a probabilidade de um aceite.

Bem, Katie não aceita e acaba ridicularizando-o de forma sistemática posteriormente. Obviamente Katia não é obrigada a aceitar o convite de Jamie, mas não é isso que está em cena, não é a recusa, mas a humilhação.

A humilhação promove vergonha. E a vergonha abre as portas do ódio na psique. Se aquilo que é da ordem do feminino já estava reprimido anteriormente, agora seu único escape se dará pela via do ódio.

Mas por que o ódio?

Ódio é o afeto que sobra aos meninos sentirem. O espírito de competitividade, o discurso do “menino não chora”, as “brincadeiras de menino”, a sexualidade predatória, tudo isso e mais são ensinados e reforçados desde muito cedo. Essa gramática e esses comportamentos têm por consequência a repressão de tudo aquilo que não se encaixa nessa maneira particular de performar o “ser homem”.

Em Adolescência, isso fica evidente quando o pai revela que levava o filho no futebol para ele ser mais “durão” e, posteriormente ficamos sabendo que à medida que Jamie jogava mais bola, desenhava menos. Há algo na natureza de Jamie que precisou ficar de lado.

A iniciação do menino aos signos da masculinidade no capitalismo patriarcal é uma ode antimulher e a tudo que pertence ao universo feminino. Esse fenômeno já é tão bem descrito e historiografado que parece uma eterna repetição do mesmo. E por um lado é. Mas há algo de contemporâneo também e isso fica nas entrelinhas da conversa que os pais de Jamie têm no último episódio, quando o pai admite que passou muito menos tempo com o filho devido às demandas do seu trabalho, que por sinal prosperava. Fiquemos com a imagem: quando prospero no trabalho, passo menos tempo com minha família; prosperar é se ausentar.

Veja, de forma alguma, essas últimas palavras intencionam atribuir culpa a indivíduos. Se tem algo que a minissérie não faz é definir um culpado. Afinal, somos todos um tanto responsáveis. Mas quem haverá de não ser num sistema que produz ódio como principal afeto em circulação no universo masculino?

Há algo na psique do homem que carece de espaço, de reconhecimento e validação. Não obstante, é quando Jamie volta a desenhar que ele assume, finalmente, que cometeu o crime, encerrando a dissociação que sofria. Talvez um caminho possível seja inaugurar uma nova espécie de ética na educação dos meninos, uma ética do cuidado, uma ética da interioridade.

(1) Na psicologia analítica, um complexo ideoafetivo é um conjunto de ideias, memórias e emoções que se interligam em torno de um tema central e que afeta o comportamento e as atitudes de uma pessoa de forma inconsciente. É como um aglomerado de ideias ~ memórias unidas por uma carga afetiva.

(2) A manosfera é um fenômeno digital que reúne homens desiludidos com suas vidas afetivas e sociais, onde proliferam discursos que culpam as mulheres e o feminismos pelos desafios enfrentados. (Valeriano, 2025).

Referências:
Fisher, M. (2023). A máquina do caos: como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo. São Paulo: Todavia.
Valeriano, M. L. (2025). ‘Adolescência’: especialista explica o que é manosfera, teoria 80/20 e como meninos caem em misoginia.
Disponível em: https://www.terra.com.br/…/adolescencia-especialista

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