David Sucre Villalobos
Nota da Curadoria: Contamos mais uma vez com a participação de nosso colega da Venezuela, David Sucre-Villalobos, psicoterapeuta junguiano, atualmente residente em Quito-Equador. O ensaísta nos traz importantes reflexões sobre o contexto politicosocial latino-americano e suas implicações para uma prática psicoterápica/analítica “contextualizada e reflexiva”, nas palavras do autor. O texto abaixo foi traduzido pela Curadoria do OPA. O original, em espanhol, segue nos comentários.
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Em janeiro deste ano (2024), no Equador, o executivo decretou um estado de conflito interno que chocou toda a coletividade. A guerra já não era mais um acontecimento distante das fronteiras onde eu vivo; a ofensiva se devia ao caos prisional, fuga de detentos pertencentes a grupos criminosos perigosos, corrupção, tráfico de drogas, terrorismo, luta por territórios e assédios periódicos aos indivíduos que habitam a costa equatoriana e que sobrevivem em seu cotidiano a roubos, sequestros e homicídios.
Diante dessa situação, lembrei das reflexões de Silvia Bleichmar de 2002/2020, quando publicou seu ensaio intitulado “Dor país”. Nele, a autora reflete sobre os tempos tanáticos que o mundo atravessa e se pergunta: o aumento da taxa de suicídio, acidentes e infartos, as formas de violência que dilaceram a alma, o aumento das toxicomanias, o excesso de prescrições de antidepressivos, o abandono vincular, a evasão escolar, o êxodo e os movimentos migratórios para paraísos desconhecidos não são elementos suficientes para medir o sofrimento que atravessamos como humanidade?
Parece que as coletividades estão condenadas em seu cotidiano a resolver as consequências da insolvência moral de suas classes dirigentes. Posterior às reflexões de Bleichmar, e após o ataque ocorrido em 11 de setembro às torres gêmeas, a guerra do Iraque e a polarização política na América Latina, os autores Layton, Hollander e Gutwill (2006) compilaram uma série de trabalhos psicanalíticos que abordavam a experiência de tocar em temas políticos nos espaços de psicoterapia. No texto escrito pelo analista junguiano Samuels (1993), o autor relatava que em um estudo realizado no qual foram entrevistados 621 terapeutas de sete países diferentes mais de 50% dos entrevistados declararam discutir temas políticos com seus pacientes em suas sessões de terapia. No entanto, os autores acrescentaram que existia muita ansiedade por parte dos terapeutas, pois questionavam se era correto ou não abordar esses assuntos no contexto de um processo de terapia com seus consultantes (Llorens, 2015).
James Hillman, em 2009, publicou um artigo para a revista da Sociedade Venezuelana de Analistas Junguianos (SVAJ), no qual o mestre questionava que nos processos de supervisão a futuros analistas, assim como em seus espaços de seminário, sempre havia espaço para discutir sobre temas religiosos, econômicos, familiares, laborais, emocionais e aspiracionais de seus alunos, mas que nunca lhes tinha sido permitido conversar com eles sobre suas posturas políticas e ideológicas, e que tal omissão em seu pensamento deveria ser refletida pelas futuras gerações de terapeutas e didatas.
Pelo que foi dito até agora, é importante ressaltar que atualmente existem poucos espaços para que teoria e técnica se acoplem às demandas que a clínica atual exige. Como habitar a palavra que está atravessada pelo social, pela violência, pelo trauma, pela polarização, pelo fanatismo e pelo ressentimento? Os acontecimentos históricos mundiais, sem dúvida, estão gerando mal-estar e sofrimento em nossas coletividades, o trauma psicossocial (Martín-Baró, 1990) perturba profundamente nossas relações de convivência. Vinculamo-nos com os outros de forma desumanizadora, a militarização da mente, o sectarismo e a polarização têm rompido o tecido social em nossos países. Exploração, oprimidos, constelação da polaridade arquetípica “vítima-vilão” têm ocasionado a normalização do anormal; o sombrio e as complexidades culturais estão projetadas para fora, cristalizando o novo mundo (Singer e Kimbles, 2004).
A psicoterapia como espaço da palavra e da memória tem um porvir crítico (Pakman, 2011, 2023). Excluir as variáveis macropolíticas incide na micropolítica do consultório. Impulsionados pela vontade íntima do desejo, guiados pela limitação da consciência, condicionados por uma linguagem que nos precede, limitados por uma biologia e atados a leis físicas insensíveis a nossas alegrias, sentimentos e misérias, reflitamos e compreendamos que o espaço da alma é um espaço onde o político, ético, moral e filosófico deixem de estar exilados. É hora de uma prática contextualizada e reflexiva em nosso trabalho como psicopompos.
Referências Bibliográficas:
Bleichmar, S. (2020). Dolor país y después… Libros del Zorzal. – Hillman, J. (2009). “El paciente como ciudadano”. Revista Venezolana de Psicología de los Arquetipos. 3, 72-78. Caracas, Venezuela.
Layton, N. Hollander y Gutwill, S. (2006). Psychoanalysis, Class and Politics: encounters in the clinical setting. Londres: Routledge.
Llorens, M. (2015). Psicoterapia políticamente reflexiva: hacia una técnica contextualizada. Editorial Equinoccio. Universidad Simón Bolívar.
Martín-Baró, I. (1990). Psicología social de la guerra: trauma y terapia. UCA: San Salvador.
Pakman, M. (2011). Palabras que permaneces, palabras por venir. Micropolítica y poética en psicoterapia. Gedisa Editorial.
Pakman, M. (2023). A flor de piel II, pensar la guerra. Gedisa Editorial.
Samuels, A. (1993). The political psyche. Londres: Routledge.
Singer, T. & Kimbles, S. (2004). La teoría emergente de los complejos culturales. En Cambray, J. & Carter, L. Analytical Psychology: Contemporary Perspectives in Jungian Analysis.