por Ezequiel Nogueira Braga, psicólogo, analista em formação pelo Instituto Junguiano de Brasília – IJBsB. Especialista em Psicologia Clínica, Gestalt-terapeuta e Mestre em psicologia clínica pela PUC – SP no Núcleo de Estudos Junguianos (2019). É autor do livro “Ficcionando: uma proposta de oficina sobre violência com jovens em conflito com a lei fundamentada na psicologia analítica”. Além da clínica, atua como psicólogo no trabalho com jovens em cumprimento de medidas socioeducativas na Secretaria de Justiça do Distrito Federal desde 2010.

Editorial

O ensaio a seguir nos desafia a buscar, tal como Teseu, que recorre ao fio de Ariadne para escapar do labirinto do Minotauro, maneiras de transitar pelo igualmente vertiginoso labirinto dos dispositivos digitais, sem nos tornarmos meras peças humanas de um gigantesco aparato virtual. O autor nos provoca ao sugerir que a estratégia para não sermos escravizados por algoritmos que, a cada instante, tudo preveem, é a consciência de um compromisso simbólico com a vida da alma—produzindo e cultivando imagens que nos situem em um espaço de liberdade, em diálogo tanto com o mundo interior da psique quanto com nossa atuação objetiva no mundo.


“Agora a minha história é um denso algoritmo, que vende venda a vendedores reais. Neurônios meus ganharam novo outro ritmo, e mais e mais e mais e mais e mais.” — Caetano Veloso, Anjos Tronchos

Vivemos em uma era em que grande parte da experiência humana é mediada por algoritmos. Redes sociais, plataformas de streaming e mecanismos de busca moldam nosso acesso à informação, influenciam nossas interações e até a construção da identidade.

A chamada “economia da atenção” (CITTON, 2016) transformou o tempo de engajamento dos usuários em um recurso valioso, explorado por sistemas que monitoram e antecipam comportamentos.

No entanto, esse fenômeno não se limita a uma questão econômica ou tecnológica. Ele altera, de maneira profunda, os processos psíquicos e simbólicos que estruturam nossa percepção da realidade.

Se a realidade sempre foi uma construção simbólica e intersubjetiva, na era digital essa construção passa a ser mediada por lógicas algorítmicas. Como aponta Clapp (2022), esse fenômeno pode levar à identificação com personas digitais, distanciando-nos da dimensão simbólica da experiência. A consequência são identidades fragmentadas, muito dependentes de métricas externas, sem um eixo interno estruturante.

Embora frequentemente apresentados como neutros, os algoritmos não apenas filtram dados, mas modelam comportamentos, reforçando padrões de engajamento que limitam a diversidade de experiências. O conceito de “filtro bolha” (PARISER, 2011) ilustra esse processo, ao mostrar como a personalização algorítmica reforça crenças pré-existentes, criando ciclos de retroalimentação que estreitam a percepção do mundo.

O problema não é só de informação, mas de imaginação. Como argumenta Sodré (2002), vivemos numa era de “nominalismo digital”, onde os signos circulam rapidamente, esvaziados de significado. As imagens, que poderiam ser portadoras de mistérios e significados profundos, são reduzidas a simples rótulos, fragmentadas, superficiais. A fragmentação e a aceleração dos signos na era digital dificultam a experiência simbólica, impedindo que a psique se envolva em um processo de assimilação e transformação profunda.

O tempo da alma não segue o ritmo frenético da rolagem infinita, da busca por respostas imediatas. As imagens precisam de cuidado, de contemplação, de demora para poderem revelar algo além do instantâneo. Como aponta Hillman (1975), é o pensamento imaginal que permite às imagens atuarem sobre a psique de forma simbólica, abrindo caminhos ao invés de reduzi-los a meras designações.

Mas, onde encontrar essa pausa em uma experiência mediada pela velocidade? Como resgatar a profundidade das imagens quando o olhar foi treinado para a pressa? Se a psique se move por símbolos e os algoritmos moldam cada vez mais como experimentamos o mundo, como preservar a autonomia do imaginário?

Não se trata de nostalgia ou de rejeitar a tecnologia, mas de reconhecer uma crise na maneira como nos relacionamos com as imagens. Como destaca Jung (1954) em Símbolos da Transformação, a psique não se reduz a um fluxo de estímulos externos; ela exige um processo contínuo de assimilação e transformação. Sendo fonte inesgotável de imagens, a psique demanda tempo e espaço para que essas representações possam ser vivenciadas e elaboradas simbolicamente.

As saídas não estão simplesmente em desconectar-se das telas ou desligar o celular. O que importa não é apenas a possibilidade de se afastar, mas a qualidade da relação que construímos com as imagens e com a experiência psíquica.

O desafio não é rejeitar o digital, mas habitá-lo sem ser habitado por ele. Para isso, é preciso restaurar uma ética do cuidado das imagens, um compromisso que vá além da lógica do consumo e da descartabilidade, permitindo que a imaginação respire e recupere sua profundidade.

Se faz necessária uma prática que exige desacelerar, criar pausas, abrir espaços onde as imagens possam existir sem a urgência de uma resposta imediata. Significa permitir que o olhar repouse sobre uma imagem sem que ela precise ser convertida em visibilidade social, medida por curtidas ou engajamento.

Na clínica, isso significa auxiliar os pacientes a reconstruir sua relação com as próprias imagens internas — perguntar quais retornam, quais dialogam com sua história, quais foram apagadas pela pressa do cotidiano.

Se vivemos em um tempo de experiências fabricadas e descartáveis, talvez o papel do psicoterapeuta seja sustentar a permanência, permitir que as imagens psíquicas se revelem no ritmo que lhes é próprio.

Restaurar essa relação não é fixar as imagens, mas deixá-las seguir seu curso, sem serem substituídas antes de cumprirem sua função simbólica. Um sonho não se interpreta como uma manchete; uma imagem do inconsciente não pode ser consumida como um vídeo viral. Como Von Franz (1988) destaca, os símbolos precisam ser vividos, não apenas analisados, pois seu poder está na experiência psíquica que despertam.

Se o labirinto algorítmico nos aprisiona, a chave pode estar em transformá-lo em imagem psíquica. Esse exercício desafia a lógica que nos captura e abre novas possibilidades de percepção e movimento. Assim como o fio de Ariadne nos guia de volta ao mundo, podemos encontrar direção ao transformar as trajetórias digitais em caminhos que nos reconectam ao imaginário profundo. Ou, como Dédalo, podemos aprender a elevar nossa visão, buscando soluções que transcendem as limitações do labirinto. E, como Hermes, podemos atravessar mundos sem nos perder, fazendo da travessia um aprendizado, e não uma prisão.

O desafio não é apenas sair do labirinto, mas aprender a percorrê-lo sem nos tornarmos parte de sua mecânica. Isso exige mais do que consciência: requer um compromisso com a vida simbólica, um pacto com as imagens que, longe de nos aprisionarem, podem abrir passagens para uma psique mais livre e viva no mundo.

REFERÊNCIAS:

CITTON, Yves. A ecologia da atenção. São Paulo: Ubu Editora, 2016.

CLAPP, Jane. Social Media and the Collective Unconscious: Archetypal Algorithms and the Colonization of the Psyche. Jung Journal: Culture & Psyche, v. 16, n. 3, p. 113–131, 2022.

HILLMAN, James. Re-Vendo a Psicologia. São Paulo: Cultrix, 1975.

JUNG, Carl Gustav. Símbolos da Transformação. Petrópolis: Vozes, 1954.

PARISER, Eli. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes, 2002.

VON FRANZ, Marie-Louise. Psicoterapia: A prática da psicologia analítica. São Paulo: Cultrix, 1988.