Lucas Cardoso Volpi, psicólogo social e clínico (*)

Em tempos de forte comoção provocada pelo desastre clímático-hidrológico do Rio Grande do Sul, Lucas Cardoso Volpi nos apresenta suas reflexões, instigadas por outro acontecimento de proporções planetárias, a pandemia do Sars-COV 2, indicando a necessidade de repensarmos as ressonâncias simbólicas desses eventos em nossa unidade corpo-alma. O autor nos pergunta: O que a pandemia nos trouxe que ainda não fomos capazes de metabolizar, uma vez que, superada, seguimos nossas vidas normalmente como antes? O que o planeta está nos dizendo e nos negamos a ouvir? Reflexões igualmente válidas e oportunas em face dos acometimentos trágicos destes dias no Sul do país.

Há quem tenha passado pela pandemia e até hoje se recusa a tentar entender o significado daquele fenômeno que não só marcou uma época mas transformou uma geração. Muitos sobreviventes negam inclusive a veracidade daquela realidade. Ao mesmo tempo, muitas pessoas permanecem sofrendo o luto, os traumas, as dores e as consequências trágicas daqueles anos. E não são poucos os ativistas e cientistas das diversas áreas que continuam chamando a atenção para a crise planetária que segue em curso até hoje. Esse texto presta reverência à memória dos quatro anos do início da pandemia e procura trazer uma visão baseada na psicologia junguiana sobre como muitas vezes passamos por processos importantes em nível coletivo e individual nos recusando a elaborar reflexões mais profundas, mantendo o status quo de suposta normalidade, rotina e “correria” do cotidiano.

Na época da pandemia, lives, reuniões e eventos online da psicologia junguiana traziam a ideia de que o planeta estaria manifestando uma resposta da natureza através da disseminação do vírus e da doença às diversas violências que o modo de vida humano vem perpetrando contra a mãe Terra. O consumismo desenfreado, predatório e frenético do sistema capitalista em que as justificativas econômicas são postas acima de tudo e de todos, ignorando causas ambientais, sociais e humanitárias, foi colocado em evidência naqueles longos dias sem poder sair de casa. Quem não se lembra das imagens de grandes avenidas desertas em pleno horário do “rush” ou das imagens via satélite da diminuição da emissão de gases poluentes dos grandes centros industriais e financeiros do mundo.

Pois bem, por um momento parecia que o mundo, para superar aquela grave crise, teria de mudar de vez o seu ritmo. Parecia que aquela doença do mundo chamaria a atenção das pessoas de forma individual e coletiva para repensarem seus estilos de vida, sobretudo nos níveis institucionais e governamentais que ditam as regras do mundo do trabalho, especialmente. Essa chamada à reflexão e revisão de atitudes é o que se espera de alguém que “cai de cama” enfermo. Das formas de adoecimento mais leves às mais graves que colocam o sujeito em risco de vida, todas impõem algum nível de alerta ao sujeito que é colocado frente a frente com sua dor e finitude e passa a ter de se haver com seus hábitos de vida.

Um olhar mais aprofundado nessa perspectiva irá passar pela recente valorização do componente emocional responsável pelo aparecimento de doenças como fibromialgia, vitiligo ou enxaqueca, a consideração do stress como fator de predisposição para lesões musculares em atletas, ou quando não se encontra uma explicação “orgânica” para um padecimento e então “relega-se” a causa ao fator psicológico. Chega-se desse modo, pelas mais diferentes vias, à ideia de psicossomática.

Não nos cabe aqui citar as mais diversas formas de compreensão sobre a psicossomática e nem mesmo traçar um histórico desse fenômeno que nos remeteria certamente aos povos mais antigos e ancestrais em que a doença representa uma manifestação dos deuses ou espíritos – ainda hoje, muitos acreditam que doenças são castigos divinos. Nosso interesse nesse texto é provocar uma reflexão e não impor um argumento como superior a outros, uma vez que dentro de uma mesma linha teórica teorias diversas acabam coexistindo. Psicanalistas, dos mais freudianos aos menos ortodoxos, toda uma gama de pensadores da medicina, inclusive apoiados pelos DSMs, e junguianos de todos os matizes sustentam uma concordância mínima de que fatores psicológicos estão estreitamente relacionados aos processos de saúde-doença.**

A título de ilustração, segue uma indagação advinda do ilustre pensador da psicologia social, o psicanalista argentino, Pichon-Riviere (1988):

õ- : é ? á. çã ú óã ã óã , , óã , é í ô (.).

Uma abordagem possível é a que trata de romper com a divisão entre mente e corpo e propor uma visão holística do ser humano. Nesse sentido, toda e qualquer manifestação de sofrimento seria ao mesmo tempo físico e psíquico. Assim, toda ferida no corpo teria o seu componente emocional, psicológico, simbólico.
Com a palavra, Jung (2011, OC VII, § 194):

í , , , , ã ã , . , é ç , ã í, ã çõ .

Já Thoward Dethlefsen e Rudiger Dahlke (1997), terapeutas e autores que se aproximam de uma linha mais “esotérica”, no livro “A doença como caminho” trazem a seguinte ideia:

Seguindo essa linha, mesmo uma lesão acidental de um sujeito que sofre uma entorse no tornozelo jogando futebol, ou uma pancada na quina do pé da cama, uma simples gripe, ou grave acidente de carro, tem sua camada simbólica pedindo para que se coloque em questão determinados aspectos de sua existência. Apoiado no conceito de sincronicidade e de permanente integração da sombra, os autores propõem, por meio do método chamado “interrogação profunda”, transformar tais expressões do sintoma em interrogações que aumente a consciência sobre si mesmo e o mundo à sua volta.

Aquele que considera alterações em sua saúde apenas como frutos de uma “bioquímica mecânica” e entende atravessamentos em seu corpo apenas como resultado de uma aleatoriedade de eventos sem sentido se assemelha àquele que julga as catástrofes das enchentes nas cidades no sudeste brasileiro de início de ano como causas naturais e considera a pandemia como um desígnio meramente (geo)político.

Ninguém precisa ser tão esotérico assim, nem mesmo junguiano ou sequer psicólogo, para concordar minimamente que existe algo mais sério que precisa ser pensado ao observar os movimentos do corpo, da alma, da Terra. Quais reflexões a pandemia nos trouxe que ainda não fomos capazes de metabolizar, visto que após ficarmos “de cama” por algum tempo seguimos nossas vidas normalmente como antes? O que o planeta está nos dizendo e nos negamos a ouvir?

Não é de hoje que diversos autores vêm trazendo reflexões sobre como esse projeto mórbido de sociedade vem nos destruindo e apontando possíveis saídas individuais e coletivas. Destaco três importantes obras da última década: em 2013, a analista junguiana suíça, Verena Kast nos trouxe “A alma precisa de tempo” (lançado no Brasil em 2016); o filósofo coreano Byung-Chul Han lançou em 2010 (publicado aqui em 2015) o livro “A sociedade do cansaço”; e, em 2019, nosso ilustre membro da Academia Brasileira de Letras, Ailton Krenak, nos apresentou “Ideias para adiar o fim do mundo”.

Diferentes linhas de pensamento vêm convergindo para trazer o mesmo alerta que faço eco aqui nesse texto: se nem mesmo a pandemia conseguiu mudar efetivamente nosso modo de vida, será que ainda há esperança de que um dia conseguiremos? Quais são as dores de seu corpo e alma que lhe pedem mudanças e você não está conseguindo escutar?

* Lucas Cardoso Volpi é psicólogo social e clínico. Trabalha atualmente como psicólogo escolar na cidade de Tatuí/SP e atende em consultório particular.

**A propósito, OKUMURA, Iris M.; SERBENA, Carlos Augusto; DORO realizaram um ótimo trabalho de revisão teórica do tema:

OKUMURA, Iris M.; SERBENA, Carlos Augusto; DORO, Maribel P.. Adoecimento psicossomático na abordagem analítica: uma revisão integrativa da literatura. Psicol. teor. prat., São Paulo , v. 22, n. 2, p. 487-515, ago. 2020

Referências:
DETHLEFSEN, T.; DAHLKE, R. A doença como caminho. São Paulo: Cultrix, 1997.
HAN, B-C. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
JUNG, C. G. Psicologia do inconsciente (Vol. 7/1). Petrópolis: Vozes, 2011.
KAST, V. A. Alma Precisa de Tempo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
PICHON-RIVIÈRE, E. O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes, 1988.