por Flora De Camillis Fraga, psicóloga clínica, analista em formação pelo Instituto Junguiano do Rio Grande do Sul (IJRS), membro do Departamento de Complexos Culturais, Política e Individuação da Associação Junguiana do Brasil – AJB.
Curatorial
O povo da nação mais poderosa do mundo o elegeu! Confia em seu “braço forte” para conduzir os destinos da nação. O déspota foi eleito por maioria do voto popular e do colégio eleitoral daquele país. Não há o que se discutir. O déspota foi eleito em um regime democrático. O que veio a seguir havia sido prometido. O déspota está cumprindo o que prometeu.
Flora de Camillis Fraga nos entrega um ensaio no qual manifesta o alerta para que prestemos atenção às nossas obscuridades psíquicas. É ali que se plasmam os tiranos, com a aquiescência de nossa obnubilada consciência política. A autora nos lembra, ainda, da necessidade do não esquecimento. A tirania se alimenta da desmemória.
Dias antes de sua posse, Donald Trump movimentou as estruturas internacionais com suas declarações sobre o Canal do Panamá, o Golfo do México, o Canadá e a Groenlândia. Um estado de alerta foi emitido para os respectivos países e aliados. Durante o seu discurso, a cada palavra, um show de horrores era revelado. Alguns ficaram incrédulos, outros, talvez, encontraram no riso uma forma de dizer que aquilo tudo era um verdadeiro absurdo.
A incredulidade não para por aí. Na mesma cerimônia, Elon Musk (recém nomeado como conselheiro para cortes de gastos públicos do atual presidente norte-americano) fez um gesto nazista por duas vezes seguidas. Vou repetir: Elon Musk fez um gesto nazista por duas vezes seguidas! Nos Estados Unidos, em que uma boa parte dos cidadãos são de descendência judaica, fugidos da Segunda Guerra Mundial promovida pelos nazistas da antiga Alemanha, isso é impensável e passível de penalização em qualquer parte do mundo.
Com tais pronunciamentos e gestos dos últimos dias, as peças desse grande tabuleiro — chamado política mundial — começam a se movimentar. Países de todos os continentes se posicionam contra tais ameaças. A geopolítica merece atenção, pois fronteiras, que antes eram “portas abertas”, agora estão bem mais restritivas e à procura de prováveis inimigos.
Como isso afetará psiquicamente a humanidade e suas relações? De que forma essas fronteiras “geopsíquicas” podem vir a afetar nossa comunicação com o mundo e com tudo aquilo que é estrangeiro (no sentido de causar estranhamento) para nós?
E novamente voltamos ao evento da posse. Os principais representantes dos meios de comunicação e de informação globais estavam lá. Alinhados e próximos do atual presidente dos Estados Unidos. Só essa imagem diz muita coisa para nós, e a principal delas é que essas grandes plataformas — as chamadas big techs — estão em consonância com a homofobia, a transfobia, o sexismo, a xenofobia e as guerras.
No início do texto Presente e Futuro, Jung (2013) nos diz que:
[…] para cada caso manifesto de doença mental existem ao menos dez casos latentes que nem sempre chegam a se manifestar, mas cujas condutas e concepções encontram-se sob a influência de fatores inconscientes, doentios e perversos, apesar de toda a aparência de normalidade. […], sua incidência relativamente baixa ainda significa muito, em vista da alta periculosidade que esses elementos representam. O seu estado mental corresponde a um grupo da população que se acha coletivamente exaltado por preconceitos afetivos e fantasias de desejo impulsivo. CW 10/1 § 490.
Jung foi certeiro em sua análise, pois, mesmo na pós-modernidade, é impressionante que estejamos novamente vivenciando o que ele viu e pressentiu durante a Segunda Guerra Mundial. Os planos de uma mobilização em massa, com os preconceitos citados acima, parecem estar em curso. Um complexo cultural extremamente poderoso eclode novamente, consciente ou inconsciente, e vem carregado de afetos.
Diante dos episódios lamentáveis e repugnantes, a atitude de olharmos para nossas sombras talvez não seja suficiente diante dessa máquina que destila e dissemina ódio. É preciso cuidar de nossas sombras constantemente, produzir memórias com narrativas diversas, se contrapondo à supremacia da voz hetero-branca-normativa que dita os caminhos da nossa existência.
REFERÊNCIA:
JUNG, C.G. Presente e Futuro. Petrópolis, RJ: Vozes. 2013.
Imagem: Carlos Latuff