Roque Tadeu Gui, psicólogo, analista junguiano (Associação Junguiana do Brasil – AJB / Instituto Junguiano de Brasília) e integrante da curadoria do Observatório da Psicologia Analítica.

No sábado passado, após uma semana intensa de trabalho, estava descansando quando minha esposa me convidou para uma conversa sobre arte em uma das galerias de Brasília. Não era exatamente o programa que eu havia planejado para aquele sábado. Pensava em cuidar do jardim, responder algumas mensagens, escrever algum ensaio. No entanto, sendo um homem prudente, aceitei o convite. Vamos lá!

Chegamos com atraso na Galeria Index (1), no Edifício Morro Vermelho, em Brasília. O estacionamento vazio nos fez pensar que tínhamos cometido um equívoco de data ou local. Ao entrar no edifício, um antigo prédio na área central do plano piloto, relembrei os anos em que ministrei cursos de Relações Humanas para o Banco do Brasil. Recordações agradáveis daquela época, já se passaram 30 anos. Atualmente, a área busca nova destinação, com o espaço de artes plásticas ocupando uma das salas do térreo. O silêncio do local contrasta com a agitação e burburinho da época em que lecionava ali.

Ao encontramos a sala, adentramos e nos acomodamos. Cerca de 10 a 15 pessoas estavam presentes, principalmente mulheres, jovens artistas de arte contemporânea. Eu não tinha clareza sobre o tema da conversa mas, como disse anteriormente, por ser um homem prudente, acompanhei minha esposa!

Percebi que se tratava de depoimentos de um grupo de artistas cujas obras estavam expostas naquela sala. Cada uma compartilhava o processo criativo por trás de sua obra, despertando meu interesse. Sincronicidade, (2) em ação?

Ao ouvir as falas, lembrei-me de um artigo recente que escrevi sobre a “Função Poética do Eu” (3). Nesse texto, com reflexões iniciais sobre essa hipotética função psíquica, especulei sobre uma função criativa, “poética” portanto, da consciência, operada pelo Eu, coadjuvante da “função transcendente” (4) já conhecida em nosso arcabouço teórico. Essa função operaria no plano egóico e se manifestaria na conjunção das quatro funções orientadoras da consciência postuladas por Jung: pensamento, sentimento, sensação e intuição. No artigo, sugeri que, diante da tarefa de lidar com o mundo externo e interno, essas funções “clássicas” estariam a serviço de uma função criativa, muitas vezes passando despercebida. A tese central é que criamos frequentemente sem consciência desse ato, e viver, em grande medida, é um processo contínuo de criação, seja de pequenas ou grandes obras. A função poética do eu alcançaria sua plenitude na “arte de viver”, possivelmente a quintessência do processo analítico e da individuação (5).

Certamente! Estar receptivo às impressões sensoriais do mundo externo e aos influxos do mundo interior, por meio da intuição, parece ser crucial para o processo criativo. O percurso pelo mundo e o confronto com a diversidade dos materiais exercem um fascínio notável sobre os artistas, que exploram novas possibilidades criativas na intimidade das coisas.

Ouvir alguém descrever o ateliê da artista como um local de retiro, de certa solidão necessária para a germinação do processo criativo e a transformação do material escolhido para a obra, ressoa com a ideia do surgimento e aceitação do inusitado. Quando uma determinada intenção da artista não se efetiva, é exigido dela que se reposicione diante do material. O material muitas vezes resiste, impondo suas próprias exigências, e às vezes guia a alma e a mão da criadora.

A menção à efemeridade de certos trabalhos de arte contemporânea traz à mente a “arte efêmera” dos monges budistas, que criam pacientemente uma obra destinada a ser desfeita pelo vento, abdicando da perenidade. Uma artista enfatiza que ao vender uma obra frágil e efêmera o que realmente está sendo “vendido” é a experiência criativa da qual o observador se torna testemunha. Fascinante, não é mesmo?

Refletindo, percebi que o trabalho artístico desenrola-se a partir da observação do cotidiano e do trânsito por lugares fora do comum. Trata-se de um sonhar com as possibilidades oferecidas pelas impressões sensoriais do mundo e suas ressonâncias na alma.

Ao ouvir o testemunho dessas mulheres artistas, naturalmente, vieram-me analogias com o trabalho alquímico, do qual nós, psicólogos analíticos, gostamos de pensar que somos herdeiros. Tanto o consultório quanto o ateliê do artista são locais de confronto com a matéria a ser transformada. No ateliê, esse confronto se dá com os diversos tipos de materiais que incitam e desafiam o artista a explorar suas potencialidades, muitas vezes não tão óbvias, e frequentemente ocultas. No consultório, o confronto com a alma, tanto a nossa quanto a do parceiro analítico que nos procura. Ambos os lugares são verdadeiros “laboratórios” (labor = trabalho e oratório = local de reverência, diálogo com a alma), exigindo certa solitude e paciência para esperar que algo “novo” emerja. Enquanto o terapeuta lapida a matéria-prima da individuação, o artista enfrenta a resistência dos materiais a serem transformados na obra. Fascinante paralelo entre esses dois processos criativos!

Chamou-me a atenção o fato de que aquilo que denominei no artigo como “função poética do eu” está tão atuante no trabalho dessas artistas. Talvez não devesse me surpreender, pois o desejo e a disposição para criar sugerem que não há outra possibilidade de vida para a artista senão o contínuo exercício dessa função. Se no artigo eu dizia que a função poética do eu utiliza as funções orientadoras da consciência, na acepção junguiana, para os pequenos ou grandes gestos poéticos da vida ordinária, aqui, com essas artistas, pareceu-me estar diante da realização plena dessa função. Ocorreu-me que a artista pode ser definida como alguém que leva a sério a função poética do eu, distinguindo-se daquelas que não percebem o contínuo ato de criação que é viver. Alguém ali, parafraseando Freud, mencionou que a criança brinca e a artista leva a sério a brincadeira. Uma ideia semelhante!

Após os depoimentos, abriu-se espaço para comentários e perguntas. Fiz algumas observações sobre essas analogias mencionadas acima e questionei se elas, as artistas, se identificavam como alquimistas contemporâneas, reunidas para compartilhar o opus. Olharam-me com certa complacência delicada. Concordaram, embora eu tenha a impressão de que se sentiam mais como “irmãs na arte”, reunidas em um !

Referências:

(1) Galeria Index – https://www.instagram.com/galeriaindex/
(2) Eventos relacionados de forma significativa mas não causal (conforme Samuels, A.; Shorter, B.; Plaut, F. – Dicionário Crítico de Análise Junguiana, Imago, 1988, p. 202)
(3) Disponível em https://ajb.org.br/wp-content/uploads/2022/11/Cadernos-Junguianos-16_2022.pdf, p. 260-273.
(4) Função que conecta opostos; exprime-se por meio so símbolo; facilita a transição de uma atitude para outra. (conforme Samuels, A.; Shorter, B.; Plaut, F. – Dicionário Crítico de Análise Junguiana, Imago, 1988, p. 83)
(5) [A pessoa] tornar-se si mesma, inteira e distinta de outras pessoas ou da psicologia coletiva. (conforme Samuels, A.; Shorter, B.; Plaut, F. – Dicionário Crítico de Análise Junguiana, Imago, 1988, p. 107)

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