por Igor de Almeida Faria Bueno, psicólogo clínico atuante em São Paulo. Analista junguiano em formação pelo IPAC – Instituto de Psicologia Analítica de Campinas filiado à AJB/IAAP. Mestre em Ciências pelo Instituto de Psicologia da USP. Pós-graduado em Psicologia Analítica Junguiana pela UNICAMP.
Curatorial
Dois acontecimentos em sincronia. Um filme brasileiro, que retrata a dor do desaparecimento do ex-deputado federal Rubens Paiva nos anos de chumbo da ditadura brasileira vivida por sua esposa, Eunice Paiva, representada no filme pela atriz Fernanda Torres que, no mesmo janeiro de 2025, foi premiada com o Globo de Ouro e indicada ao Oscar pelo seu trabalho. Tudo isso em janeiro de 2025, mês em que devemos rememorar o vergonhoso 08 de janeiro de 2023, quando as sedes dos Três Poderes da República em Brasília foram invadidas, e seus prédios vandalizados por violentos e desqualificados insurgentes bolsonaristas, que não aceitaram a soberania e liberdade do voto popular, bem como fingem esquecer a dor das pessoas e famílias arrasadas pela violência e ilegalidade que definem um regime militar. O ensaio de Igor Bueno nos lembra da necessária resistência à barbárie. De todos os tempos.
O filme “Ainda Estamos Aqui” retrata as consequências profundas, para uma família, do desaparecimento do ex-congressista Rubens Paiva, durante a ditadura cívico-empresarial-militar brasileira.
A protagonista é Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres, vencedora do Globo de Ouro 2025 e agora indicada ao Oscar, ambos na categoria de melhor atriz. Sua atuação merece destaque por nuances notórias. A voz embargada, que raramente expressa de modo efusivo seus sentimentos, é o retrato da repressão.
O filme pode ser divido em três partes. A primeira é aquela em que Rubens Paiva, centro do palco, exprime vigor e alegria. Selton Mello interpreta a personagem de modo que cativa o espectador a sentir sua energia e, posteriormente, sua ausência.
Nas duas partes posteriores, Fernanda Torres ocupa totalmente o centro do palco cinematográfico. É dela a imagem de tudo aquilo que se apresenta: silêncios, sussurros e gritos abafados. Tudo na expressão do horror e da tensão pelo desaparecimento do marido. Com ela, nos sentimos constantemente atordoados e com um desejo visceral de gritar. Mas dela pouco sai. Ela é a encarnação do represado. Como um sintoma, ela é presente e incomodamente teimosa, dificilmente ignorável. Olhamos para ela e vemos a nós mesmos em uma agonia que não é exprimível.
Desaparecimento é um eufemismo. Por pouco tempo, a personagem sustenta a esperança de que o marido não tenha sido assassinado. É esse justamente o ponto deste breve texto.
“Ainda Estou Aqui” deveria ser um filme esquecível se vivêssemos em uma sociedade em que a busca por justiça social tivesse triunfado. O não dito é agressivo e qualquer tentativa de ignorá-lo faz parte do absurdo que testemunhamos.
O tema de nosso filme me remete ao termo grego “”, que significa literalmente “não-esquecido”. Para os gregos, aletheia é um princípio básico para a busca da verdade.
Assim, recordar é conhecer e, adiante, fazer psique. Se Rubens Paiva tivesse caído no esquecimento, ignoraríamos nossa experiência coletiva como sociedade brasileira. Como um sintoma, o recalcado sempre retorna. Não estranhamente, neste janeiro do ano de 2025 vivemos “ainda” a sanha golpista, violenta e autoritária, fruto das barbaridades homicidas da ditadura.
“Ainda estamos aqui” poderia ser uma expressão adequada da insistência desse trauma coletivo, de um complexo nacional, do nosso sujeito Brasil. A permanência deste complexo é lamentável. Este país ainda não sepultou seus mortos, assim como até hoje não se sabe do corpo de Rubens Paiva. Eunice teve que se contentar com um pedaço de papel, uma certidão de óbito, como um mero reconhecimento do ocorrido. “Ainda” assim, Eunice estava abafada, com um sorriso vitorioso, porém modesta, apesar de inabalável.
A falta de flutuação da personagem parece dizer sobre a sociedade brasileira que para sobreviver teve de se calar e seguir. São nos sintomas desta sociedade que a verdade grita.
Recorro aqui a outro filme para retratar o que “Ainda Estou Aqui” pouco trouxe. Foi durante estas décadas de ditadura que a desigualdade galopou no país. O regime serviu às elites como nunca. Os pobres foram se amontoando em comunidades, em favelas, e relegados aos Deus dará, a sua própria sorte.
O filme que retrata isso é “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meireles. Se bradar por democracia foi e ainda é um gesto semiótico da classe média, gritar por prosperidade é o sintoma dos mais pobres. Ambos são manifestações que denunciam o autoritarismo e a tirania de classes dominantes. Por isso, “ainda” estamos aqui, um tanto quanto que na mesma.
Sinto-me recompensado pelo prêmio e indicação da magistral interpretação de Fernanda Torres, mas, após poucos dias de tê-la visto no cinema, senti-me raptado pelo Brasil novamente com suas facetas mais diabólicas.
Comemoremos a Memória reconhecida. Fizemos Memória! Sem dúvida é parte do caminho. Mas, nele, o Brasil tem se repetido e uma atuação notória pode ser facilmente convertida em anedota histórica. Os processos político-sociais deste pais insistem que precisemos levantar a voz para que a verdade, no sentido grego, seja ouvida. Um “ainda” presente sinal da violência cotidiana deste país a respeito dos torturados, dos marginalizados e dos excluídos.
Um prêmio, como o de Fernanda Torres, é como um gole de um saboroso vinho em uma noite festiva, mas que é rapidamente esquecido pelas duras realidades com que precisamos nos deparar na manhã seguinte. “Ainda” há muito o que ser feito.
Foto: O ex-deputado Rubens Paiva entre sua mulher, Eunice (à esq.), a sua mãe e os cinco filhos. Reprodução: Memorial da Democracia.