Rubens Bragarnich, psicólogo, analista junguiano (Associação Junguiana do Brasil – AJB/IJUSP – Instituto Junguiano de São Paulo) e integrante da curadoria do Observatório da Psicologia Analítica.
As mortes de Pelé (1940-2022) e Zagallo (1931-2024) fecham um ciclo de excelência e admiração mundial pelo nosso futebol (masculino), pentacampeão mundial, dois vice-campeonatos mundiais, tetracampeão da Copa das Confederações, campeão olímpico e vice-campeão olímpico, várias vezes campeão mundial por equipes e tantas outras conquistas, além de um prodígio na formação de craques da bola.
O esporte, introduzido em 1895 pelo multiesportista Charles Miller, já flertava com o sucesso no mundial de 1938 e no pós-guerra disputou a final no Maracanã para o Uruguai em 1950.
A despeito do tropeço e da dor, os brasileiros foram se apaixonando e identificando-se com o futebol, sua estética e um sentimento de confiança que logo seria reconhecido pelos outros países do mundo. E, de fato, a partir de 1958, passamos a acreditar que tínhamos o melhor futebol do mundo.
A geração de Pelé, Zagallo, Garrincha e companhia tornou o futebol um ponto fora da curva nas competições internacionais, de clubes e de seleções.
As gerações seguintes trataram de manter essa mística: Zico, Rivelino, Falcão, Sócrates, Ronaldinho Gaúcho, Rivaldo, Ronaldo, Kaká, Neymar Jr, Vavá e tantos outros.
Se Pelé foi o máximo em termos de futebol, Zagallo foi um ótimo jogador, sem excepcionalidade, mas um predestinado: solidário, alterou a dinâmica tática do modo de jogar para o sistema 4-3-3, pois recuava para ajudar no meio campo em alguns momentos do jogo.
Como técnico, foi inovador e, do apelido de “‘formiguinha” como jogador, tornou-se um técnico competente e vencedor, agora alcunhado de ‘Velho Lobo’, maior ganhador de troféus significativos da FIFA.
O Brasil era reconhecido na música (samba, bossa nova, tropicália), pela sensualidade, o carnaval, a cordialidade, pelo jeitinho brasileiro, pela democracia racial e especialmente pela excelência do seu futebol.
!
Jung interessou-se pela diferenciação de identidades nacionais quando se referiu às diferenças entre alemães, franceses, ingleses e norte-americanos, como também de judeus, cristãos, africanos. Joseph Henderson tentou semelhante tarefa para descrever a identidade do protestante, que acabou não sendo realizada. Nada mais natural, portanto, que buscar uma diferenciação entre nações ou etnias, através de aspectos culturais, históricos, sociais e psicológicos.
Por aqui, coube ao dramaturgo e cronista esportivo , em 1957, detectar o sentimento crônico de inferioridade nacional numa crônica do livro “A Sombra das Chuteiras Imortais”, onde nomeia com rara felicidade o conceito de “viralatismo” do brasileiro, contrastando com outros pensadores que apontavam caraterísticas tipológicas do brasileiro: cordial, pacífico, tolerante com as diferenças étnicas e raciais, alegre etc.
Observando em camadas, a primeira compreensão que nos ocorre é que se trata de uma realidade de ordem mais ampla que envolve os povos e regiões que foram colonizadas em diversas épocas: América latina, África e países asiáticos (a exceção parece ser a Austrália), que produzem naturalmente as condições propícias para o sentimento de inferioridade, de subserviência, que no Brasil foi chamada de viralatismo.
As imagens do viralata flutuam em torno da ideia do cão perdido, sem pedigree, abandonado nas ruas e nos espaços rurais. Lembra-nos ainda a ideia de submissão, fraqueza, pobreza e rebaixamento em comparação com os povos e países centrais, dominantes, colonialistas.
Na segunda camada, podemos compreender a formação de crenças e atitudes cognitivo-comportamentais e emocionais, de caráter compensatório, através de indicadores de superioridade e de excelência onde o futebol, os clubes e os craques são extraordinários, venerados como lendas e mitos vivos. O próprio Nelson Rodrigues expressa essa tendência em suas crônicas jornalísticas. Aí encontramos os motivos e temas nos quais podemos nos orgulhar, sermos respeitados, admirados e invejados.
Na terceira camada, a compreensão relaciona-se com as nossas reais deficiências que ficam encobertas: país com alto índice de criminalidade, com péssima distribuição de renda, com elites incompetentes, índices sociais e educacionais precários. Somos atravessados por preconceitos de toda ordem em relação a grupos étnicos, religiosos, raciais, ideológicos, de gênero, políticos, regionais, de classes sociais, que se expressam em formações estereotípicas, em geral inconscientes, por complexos culturais e outras disfunções sócio-históricas e culturais.
Hoje, o futebol brasileiro está distante do povo brasileiro, disponível nas prateleiras de baixo do futebol global, onde ocupa o lugar de exportador de jovens atletas talentosos para a Europa e outros centros ricos, dentro do processo sofisticado de mundialização da economia, nesta fase absolutamente desumana do capitalismo neoliberal.
A história recente tem demonstrado que o centro de gravidade do futebol internacional voltou para a Europa com ligas altamente competitivas, organizadas e ricas. Assim, pratica-se novamente um domínio neocolonialista sobre as nações da América do Sul, África e Ásia no âmbito do futebol. Jogadores muito criativos e promissores são comprados, modelados física e nutricionalmente; recebem treino tático, rítmico, dominando todos os fundamentos do esporte.
Quando esses atletas estão em fim de carreira, já veteranos, eles são repatriados. Esses fluxos financeiros provocam dois efeitos simultâneos: empobrecimento dos campeonatos de futebol nas nações e continentes periféricos e o afastamento dos brasileiros de seus ídolos que, em geral, jogam fora do país, nesses centros de excelência, o que dificulta o processo de identificação do futebol com a brasilidade. A frustração com o gradual abandono do torcedor em relação a sua seleção resulta no retorno de parte da energia psíquica dos aficionados à torcida pelos clubes de raiz, proporcionando recordes de arrecadação pós pandemia.
As mortes de Pelé e Zagallo demarcam o fim de um tempo, fraturando um pedaço da cultura de massa, a identidade do brasileiro, seu principal ponto de identificação com um futebol romântico, bem jogado e vencedor, por décadas cognominado “melhor futebol do mundo”.
A despeito da decadência de uma era de ouro do futebol brasileiro, o que nos traz algum alento é que podemos estar no alvorecer de novos ciclos criativos, com o crescente intercâmbio de jogadores latino-americanos, treinadores e profissionais estrangeiros (portugueses e argentinos em geral) aficionados ao uso de tecnologia do esporte. E nos chama a atenção, prazerosamente, o fortalecimento do futebol feminino, de incrível beleza, com desenhos táticos e atitudes éticas aliadas à competitividade esportiva.
Referências:
Murray Stein (org): Psicanálise Junguiana – trabalhando no espírito de C. G. Jung – Cap. 3: Complexos Culturais em análise. Ed Vozes, RJ.
Nelson Rodrigues: À Sombra das Chuteiras Imortais – Crônicas de futebol. Cap: O complexo de vira-lata. CIA das Letras, SP, 1993.
Th. Singer & Catarine Klapinski: citação de trecho da carta de J. Henderson para C. G. Jung em 04/12/1947.
Foto: Lance