por Sandra Souza, psicóloga clínica e organizacional, psicopedagoga, analista junguiana em formação pelo IJUSP – Instituto Junguiano de São Paulo, membro do NERE Núcleo de estudos sobre religião e espiritualidade.
Curatorial:
Um ano que finda. Outro que começa. Costuma-se saudar os amigos com um “bom final de ano”, um “feliz ano novo”. A saudação, corriqueira e de aparência banal, um formalismo social, traz consigo, em seu aspecto mais profundo, psíquico, o desejo de que ainda ao final de um ciclo anual, a vida nos reserve alegrias, e que o ciclo que se inicia seja pleno de potencialidades de amor à vida. Sandra Souza nos traz suas reflexões críticas a respeito dos (des)caminhos de nossa cultura, através dos ciclos. A crítica, contudo, também traz consigo a esperança da criação e manutenção de “espaços sagrados”, nos quais a vida possa florescer.
As festividades de final de ano abrem espaço, em nossa convivência social e na comunicação das massas, para elementos relegados a segundo plano no atual contexto de nossa história cultural. Entram em cena a sensibilidade e os nobres sentimentos.
Apesar disto, ao ler os jornais, talvez sejamos levados a acreditar que a sensibilidade está em baixa e a brutalidade em alta, numa relação a partir da qual apenas a face bruta e destrutiva dos humanos se mostra presente.
Seja pelos confrontos e guerras visíveis no tabuleiro geopolítico, seja pela manipulação de imagens e notícias que circulam nas redes que usam da violência, do confronto e da desinformação para se retroalimentarem, ou ainda pelo destaque que ganham personalidades bélicas, antidemocráticas, e racionalmente perspicazes, com seus fascinantes e unilaterais pontos de vista, somos levados a acreditar que a sensibilidade está em baixa, e a brutalidade em alta.
Segundo matéria publicada na CNN, os números levantados pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos são assustadores: cerca de 134 guerras e outros conflitos armados, durante o período de 01 de Julho de 2023 a 30 de Junho de 2024, deixaram mais de 200 mil pessoas mortas ao redor do mundo (1).
A mesma matéria dá conta de que o mundo hoje possui mais de 43 milhões de refugiados, além de quase 80 milhões de pessoas que foram deslocadas dentro de seus próprios países.
Em seu livro A guerra não tem rosto de mulher, Svetlana Aleksievitch, vencedora do prêmio Nobel de literatura em 2015, nos mostra uma outra face presente nos campos de combate: a vulnerável e sensível face da natureza humana nos relatos íntimos de soldadas e oficiais soviéticas que lutaram na segunda guerra mundial.
Ela diz: “Sigo as pistas da vida interior, faço anotações da alma. O caminho da alma é mais importante para mim que o próprio acontecimento, não tão importante ou não igualmente importante: ‘como aconteceu’ não fica em primeiro lugar, o que preocupa e assusta é outra coisa – o que aconteceu com o ser humano ali? O que ele viu e entendeu? A respeito da vida e da morte como um todo. E por fim, a respeito de si mesmo. Estou escrevendo uma história dos sentimentos… uma história da alma… Não é a história da guerra ou do Estado, e não é a biografia dos heróis, mas a história do pequeno ser humano arrancado da vida comum e jogado na profundeza épica de um acontecimento enorme. Na grande História.” (Aleksievitch, 2016, p. 62).
Em 1928, quando reflete sobre o problema psíquico do homem moderno, Jung nos diz: “Do ponto de vista da psique, o mundo ocidental se encontra numa situação crítica, e o perigo será ainda maior se preferirmos as ilusões de nossa beleza interior à verdade mais impiedosa. O homem ocidental vive numa espessa nuvem de ‘auto-incensação’ para dissimular seu verdadeiro rosto. E os homens de outra cor, o que somos para eles? O que pensam de nós a Índia e a China? O que sente o homem negro a nosso respeito? E o que pensam todos aqueles que exterminamos pela cachaça, pelas doenças venéreas e pelo rapto de suas terras?” (JUNG, OC 10/3, § 183).
Passados quase 100 anos dessas reflexões, podemos ver, por um lado, a coragem e a liberdade espiritual de Jung, e por outro, o reconhecimento racional de que a cultura ocidental havia falhado em seu autocentrado projeto de superioridade e domínio.
Nos vemos diante de um cenário no qual as guerras acontecem tanto na materialidade dos conflitos armados quanto na imaterialidade das guerras de narrativas.
Cercados por incertezas e inseguranças que nos atravessam nos mais diferentes níveis, temos ainda a Natureza indômita – personificada pelos cada vez mais violentos, frequentes e inesperados eventos climáticos – que apresenta sua face feroz aos nossos olhares assustados e desamparados, nos desafiando: são vocês, com sua intelectualidade e racionalidade, tão sábios e poderosos assim?
Segundo o horóscopo chinês, o ano de 2025 será regido pelo signo da serpente; no mesmo ano celebraremos os 150 anos do nascimento de Jung, até hoje rotulado como “ocultista, cientista, profeta, charlatão, filósofo, racista, guru, antissemita, libertador das mulheres, misógino, apóstata de Freud, gnóstico, pós-modernista, polígamo, curador, poeta, falso artista, psiquiatra, antipsiquiatria – do que C.G. Jung ainda não foi chamado?” (Shamdasani, 2017, p. 15).
Talvez tenha sido chamado por tudo o que uma perspectiva unilateralizante seja capaz de produzir, e certamente outros rótulos estão por vir, pois as projeções, como sabemos, ajudam a ver no outro aquilo que narcisisticamente ainda não estamos preparados para ver em nós mesmos.
Para a seita gnóstica dos Ofitas, “a serpente representava o princípio espiritual que simboliza a redenção relativamente às amarras do demiurgo que criou o Jardim do Éden e que manteria o homem na ignorância. (…) Psicologicamente, a serpente é o princípio da ‘gnosis’, do conhecimento ou da consciência emergente” (Edinger, 2020, p. 36).
Segundo o mito judaico cristão do Jardim do Eden, é a serpente que conduz a mulher e o homem à Árvore do Conhecimento, e talvez somente depois de várias quedas e ascensões, e das várias diferenciações entre bem e mal, seja possível chegar à Árvore da Vida.
No grande ciclo da história da vida humana na terra, a partir de uma perspectiva geográfica e linear, cada continente, cada nação, cada cidade, cada bairro, cada família e cada indivíduo vive seu próprio ciclo arquetípico e eterno de ascensão e queda, e o faz sendo atravessado por uma série de eventos das mais diversas ordens: sociais, culturais, naturais, religiosas, biológicas… Eis aqui a tal “equação pessoal” no contexto da psicologia complexa.
A perspectiva pragmática e racional tende a olhar para os resultados dos pequenos ciclos, dos pequenos conflitos e guerras, não considerando a eternidade, o irracional, a criatividade divina – contida nas perguntas sem respostas dos mais variados campos da ciência – enfim, não considera o incognoscível.
Essa perspectiva racionalmente iluminada cria uma realidade necessária ao aspecto heróico do ego: a “de que nossa consciência e nosso raciocínio nos tornam superiores a tudo o mais que há no planeta. E nos autopromovemos a senhores do universo, dando a entender que administramos, controlamos e aperfeiçoamos o mundo e a natureza em que vivemos mediante nossos recursos superiores.” (Whitmont, 1991, p.138).
Murray Stein, ao discorrer sobre os traumas culturais, relata a experiência do analista Toshio Kawai, quando *”observou que a cura tornou-se evidente nas vítimas do terremoto, seguido de tsunami, ocorrido em 2011 no leste do Japão, quando as ‘grandes histórias’ cederam lugar às ‘pequenas histórias’. As grandes histórias eram os relatos, feitos pelas vítimas, dos eventos traumáticos; as pequenas eram relatos sobre o cotidiano, restaurado a um estado menos anormal na solução de problemas e nas interações diárias dessas vítimas.”* Stein segue, então, afirmando que para a cura dos traumas coletivos “a grande história do evento traumático, seja uma catástrofe natural, uma guerra, uma revolução, uma fuga de refugiados ou um ataque terrorista, precisa ser contada em um espaço seguro, em um ‘jardim do coração e da alma’ (2) (…)”. (Stein, 2021, p. 273).
Não me parece que um “jardim do coração e da alma” possa ser colocado em praça pública num cenário de disputas por verdades absolutas territorialmente demarcadas pelas narrativas das grandes histórias. Então, quero crer que ele sigo sendo cultivado em encontros genuínos e verdadeiros, que apenas a atenção a um brilho estranho e fugaz do olhar é capaz de revelar, ou ainda esteja sendo preservado pelo talento de escritoras como Aleksiévitch, autorizada, pela natureza do seu fazer, a nos mostrar a beleza da sensibilidade e vulnerabilidade da alma por baixo dos artefatos heroicos de mulheres pouco conhecidas e reconhecidas por sua participação na Segunda Grande Guerra.
Certamente, pequenos espaços sagrados, envoltos pelo mistério que é o processo analítico, protegidos e invisíveis aos efeitos das grandes massas, também seguem existindo, e neles, talvez, aqueles com ouvidos atentos possam abrir mão de suas defesas e armaduras para escutar o chamado da serpente rumo ao solitário caminho do autoconhecimento, com suas várias e cíclicas quedas e ascensões, rumo ao pretenso e jamais alcançado conhecimento do que é o mistério de viver e estar vivo.
(1) FONTE: https://www.cnnbrasil.com.br/…/numero-de-vitimas-de…/
(2) Metáfora utilizada por Heyong Shen e Gao Lan para falar do espaço de tratamento psicoterapêutico das vítimas de traumas, em sua maioria crianças de orfanatos. (Stein, 273)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Aleksiévitch, S. (2016). A guerra não tem rosto de mulher. São Paulo: Cia das Letras.
Edinger, E. (2020). Ego e Arquétipo, Uma Síntese Fascinante dos Conceitos Psicológicos Fundamentais de Jung. São Paulo: Cultrix.
Jung, C. (2011). *Obras Completas, Volume 10/3, Civilização em Transição*. Petrópolis: Vozes.
Shamdasani, S. (2017). Jung e a Construção da Psicologia Moderna, O Sonho de uma Ciência. São Paulo: Ideias e Letras.
Stein, M. (2021). Sincronizando Tempo e Eternidade, Ensaios sobre Psicologia Junguiana. São Paulo: Cultrix.
Whitmont, E.C. (1991). Retorno da Deusa. São Paulo: Summus.