Sílvio Lopes Peres, psicólogo, analista junguiano (AJB/IPABAHIA) e integrante da curadoria do Observatório da Psicologia Analítica.
Gostemos ou não, somos culpados pelos crimes cometidos pela sociedade porque compartilhamos da condição humana. Não podemos nos deixar seduzir pelo discurso da fuga, da ambiguidade, da transferência de responsabilidade, da indefinição, muito menos da “anistia aos acusados e condenados pelos crimes cometidos nas manifestações ocorridas em Brasília, na Praça dos Três Poderes, no dia 08 de janeiro de 2023”, como propõe um senador da República.
Se assim for, arriscamos violentar nossos limites morais e perdermos o nosso caráter – individual e coletivo – como se pudéssemos nos ausentar da realidade e da época presente.
Quem esteve próximo ou distante dos crimes cometidos pela extrema-direita sente “culpa psíquica coletiva”. A culpa coletiva é uma “fatalidade trágica”, segundo C. G. Jung (1).
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É muito importante entender que essa reflexão não pretende acusar ninguém; antes, se quisermos lidar com a culpa de maneira psicologicamente adulta, precisamos admitir-nos culpados. Reconhecer os danos causados a nós mesmos e aos outros.
Zygmunt Bauman, em “A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas”, afirma: “Quer eu admita, quer não, sou o guardião do meu irmão porque o bem-estar do meu irmão depende do que eu faço ou do que me abstenho de fazer. E sou uma pessoa moral porque reconheço essa dependência e aceito a responsabilidade que ela implica […] A dependência de meu irmão é o que me faz um ser ético. A dependência e a ética estão juntas” (2).
A proximidade, o horror e nossa vontade de o criminoso ser julgado pela justiça, sinaliza a ligação existente entre todos nós, bons e maus, por isso sentimos uma “culpa trágica coletiva”.
O motivo principal desse sentimento é sentirmos o mal arder, como brasa, em nossos corações, ficarmos indignados e querermos que os criminosos sejam punidos. Compartilhamos do mal dos maus em nossas almas. E lidarmos com a fatalidade trágica dessa “culpa” que nos caracteriza como humanos é nos individuarmos.
Caríssimo leitor, desculpe-me pela longa citação, porém, devido à relevância do tema da ” “, em especial pela nossa sociedade no atual momento, precisamos nos conscientizar:
” , , da consciência moral e as instituições sinistras estão aí para quem quiser ver. Foram homens que cometeram esses atos: eu sou um homem e, enquanto natureza humana, compartilho dessa culpa como também trago em minha própria essência a capacidade e a tendência de fazer, a cada momento, algo semelhante: do ponto de vista jurídico, mesmo não estando presentes no momento do ato, nós somos, enquanto seres humanos, criminosos em potencial.
Na realidade, só nos faltou a oportunidade adequada para nos lançarmos ao turbilhão infernal. Ninguém está fora da negra sombra coletiva da humanidade. Se o crime foi cometido por muitas gerações ou se apenas hoje é que se realiza, isso não altera o fato de que o crime é o sintoma de uma disposição preexistente em toda parte, de que realmente possuímos uma “imaginação para o mal”.
Apenas o imbecil pode desconsiderar durante todo o tempo as condições de sua própria natureza. Mas é justamente essa negligência que se revela o melhor meio para torná-lo um instrumento do mal. […] Isso só fortalece enormemente a posição contrária, pois, com a projeção do mal, nós deslocamos o medo e a irritação que sentimos em relação ao nosso próprio mal para o opositor, aumentando ainda mais o peso da sua ameaça.
Além disso, a perda da possibilidade de compreensão também nos retira a capacidade de lidarmos com o mal. Aqui nos vemos diante de um dos preconceitos básicos da tradição cristã e um grande obstáculo a nossa política. Segundo esse princípio, é preciso evitar o mal a todo custo e, se possível, jamais falar dele nem o mencionar.
O mal é também o “desfavorável”, o tabu e a instância do temor. O comportamento apotropaico na relação com o mal e na forma de se lidar com ele (mesmo que aparente) vem ao encontro da tendência característica do homem primal de evitar o mal, de não querer percebê-lo e de, se possível, afastá-lo para outras fronteiras, tal como o bode expiatório, no Antigo Testamento, usado para afastar o mal para o deserto” (3).
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Se não é pela democracia é fascista!
REFERÊNCIAS:
(1) JUNG, C. G. Aspectos do drama contemporâneo. Petrópolis: Vozes. Vol. 10/2
(2) BAUMAN, Z. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008
(3) JUNG, C. G. Presente e futuro. Petrópolis: Vozes. Vol. 10/1
Foto: Gabriela Moncau – Brasil de Fato.