por Jorge Miklos, psicólogo clínico e supervisor na abordagem da Psicologia Analítica, com atuação voltada para a interface entre Religião e Psique.
Curatorial:
Um ciclo da Igreja Católica se fecha com a morte de um Papa. Outro tempo se abre, para renovação institucional, mas também para novos gestos que encarnem a Caridade Cristã na figura de um novo Papa. O desafio para o Colégio Cardenalício é gigantesco. Não se trata apenas de cumprir um rito de escolha de um novo Chefe para a Igreja. Mais do que isso: encontrar alguém que possa, ao seu próprio estilo, estar à altura daquele que encarnou o amor fraterno e a misericórdia cristã. Em seu ensaio, Jorge Miklos reflete sobre o significado simbólico da figura humana de Francisco e o impacto de suas ações no mundo contemporâneo. Ao fazê-lo, destaca o desafio que se impõe à Instituição Católica: estar à altura de seu legado.
Foi-se Francisco — aquele que ousou carregar no próprio nome o gesto inaugural de conversão de Francisco de Assis, e que, no corpo frágil, soprou o Evangelho vivo para dentro de um mundo desencantado. Nele, o púlpito se desfez em chão; nele, a doutrina abandonou a rigidez para ajoelhar-se diante do sofrimento humano.
Sua morte não é uma perda apenas para a Igreja Católica. Francisco pertence à humanidade. Sua vida foi um gesto contínuo de deslocamento: dos palácios às periferias, da teologia abstrata ao cuidado concreto dos pobres, dos altares dourados às encruzilhadas da existência. Em termos junguianos, Francisco realizou o movimento de individuação da instituição eclesial, não ao inflar sua persona sagrada, mas ao escavar suas raízes na sombra coletiva: a sombra da exclusão, da injustiça, da violência sistêmica.
Ao convocar a Igreja a despir-se de seus ornamentos, ele tocou o arquétipo da humildade — não como submissão, mas como força criadora que reconecta o humano ao divino por meio da carne vulnerável do mundo. Essa travessia exigiu dele uma coragem rara: a coragem de ser, ao mesmo tempo, o “velho sábio” e o “trickster”, aquele que carrega a sabedoria profunda, mas sem armadura. Como afirmou Carl Gustav Jung, “onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro” (JUNG, 2012, p. 28). Francisco, mais do que ninguém, encarnou essa advertência, dissolvendo as pretensões de dominação em gestos de amor desarmado.
A encíclica ‘Laudato Si’ (2015) foi a expressão mais luminosa de sua missão. Ali, Francisco transcendeu a cisão moderna entre espírito e natureza, convocando uma ecologia integral que une o grito da Terra ao clamor dos pobres. Em termos simbólicos, propôs uma reconciliação dos opostos: céu e chão, mística e política, logos e eros. Foi um gesto alquímico, no qual a matéria do mundo e a transcendência divina puderam novamente dançar juntas. Jung compreendeu essa necessidade ao afirmar que “o ser humano não se realiza negando o mundo, mas unindo-se a ele” (JUNG, 1990, p. 239). A Laudato Si’ é, nesse sentido, uma convocação ao reencontro, uma tentativa de cura para uma humanidade esgarçada por suas próprias clivagens.
E, em meio a um universo de fé desencarnada, Francisco ousou, com desarmada simplicidade, restituir à sexualidade e ao prazer sua dignidade sensível. Em Terra Futura: conversas com o Papa Francisco sobre ecologia integral (2020), afirmou que “o prazer de comer e o prazer sexual vêm de Deus”, esclarecendo que “o prazer de comer serve para manter uma boa saúde, da mesma forma que o prazer sexual serve para embelezar o amor e garantir a continuidade da espécie”. Com tal afirmação, rasgou séculos de repressão e culpa, devolvendo à pulsão erótica e ao prazer vital seu lugar legítimo no tecido da criação. Esse gesto ressoa como uma tentativa de cura de um complexo cultural que, há séculos, cindiu corpo e alma, prazer e fé.
Sua morte, portanto, não inaugura apenas um silêncio. Inaugura uma memória viva — uma presença que insiste e persiste como fermento. Francisco nos deixa o chamado à coragem, à escuta e à ternura ativa, num tempo em que o mundo clama, muitas vezes silenciosamente, por almas capazes de descer ao vale dos esquecidos e de lá recolher os fragmentos da esperança.
Foi-se o homem do gesto e do silêncio, o papa que preferiu a escuta à condenação. Seu corpo retorna à terra, mas aquilo que o habitava — a radicalidade da compaixão, a ética do cuidado, a coragem do Evangelho vivo — permanece entre nós, como um convite aberto à travessia.
Francisco tenha sido, mais do que um reformador da Igreja, um artesão de pontes. Um homem que soube sonhar a unidade num mundo de fraturas, e que, na fidelidade ao espírito de Assis, nos lembrou que é possível ser ao mesmo tempo humilde e grandioso, terreno e sagrado, ferido e luminoso.
Com sua partida, somos convocados a continuar o trabalho. A ferida que ele revelou — a da separação entre o humano e o divino, entre o pobre e o poderoso, entre a Terra e seus filhos — permanece aberta. A tarefa de curá-la é agora nossa.
* Este texto foi originalmente publicado em minhas redes sociais (Facebook e Instagram) no dia 21 de abril de 2025, por ocasião do anúncio da morte do Papa Francisco. Posteriormente, foi lido e interpretado poeticamente pelo Senador Randolfe Rodrigues (PT/AP) na tribuna do Senado Federal, estando disponível no canal da Mídia Ninja: https://www.youtube.com/watch?v=JqoilI4f4CU. Após essa circulação, o texto foi revisado, ampliado e adaptado para o Observatório de Psicologia Analítica.
** Jorge Miklos é psicólogo clínico e supervisor na abordagem da Psicologia Analítica, com atuação voltada para a interface entre Religião e Psique. Possui graduação em História e Psicologia, especialização em Psicologia Analítica, mestrado em Ciências da Religião e pós-doutorado em Ciências Sociais Aplicadas. Atualmente, é docente e supervisor clínico no Instituto Freedom (SP) e no CEJAA (Centro de Estudos Junguianos Analistas Associados – RJ), supervisor da Clínica Solidária do Instituto do Imaginário e membro do CESEEP (Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular), no qual integra práticas de formação ecumênica e libertadora com a escuta simbólica da alma.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FRANCISCO; PETRINI, Carlo. TerraFutura: conversas com o Papa Francisco sobre ecologia integral. Tradução em português prevista. Petrini é fundador do movimento Slow Food. [Publicação original: setembro de 2020].
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução de Maria Luiza Appy. Petrópolis: Vozes, 2012.
JUNG, Carl Gustav. Mysterium Coniunctionis: investigações sobre a separação e a composição dos opostos na psique. Tradução de Dora Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes, 1990.
Imagem: Pope Francis por Greg Joens