por Lya Bueno, psicóloga clínica, membro analista didata do Instituto de Psicologia Analítica de Campinas (IPAC), filiado à Associação Junguiana do Brasil (AJB) e à International Association for Analytical Psychology (IAAP).

Editorial

Poder e amor são sempre e completamente antagônicos? Trata-se, desde sempre, de uma questão filosófica e psicológica. Ambos elementos fazem parte da existência humana. Eros cria a civilização, o poder pode destruí-la. Mas também falamos do “poder do amor”. Queremos dizer que existe uma possibilidade sinérgica no encontro desses dois elementos? Um poder exercido em nome do amor? Que produz civilização? A personalidade narcisista, ao contrário, “ama o poder”. Para seu próprio enlevo, para a autopromoção egoica. Um poder que não está a serviço, mas que serve ao engrandecimento do eu narcísico. A autora deste ensaio nos oferece uma reflexão sobre o que é o poder nas mãos daqueles que apenas amam a si mesmos.


Temos nos deparado nos últimos tempos com demonstrações de poder por parte de alguns governantes, marcadas por comportamentos truculentos, desrespeito às opiniões alheias e falta de diplomacia, o que se espera de qualquer Chefe de Estado.

Todas essas ações nos chocam e nos fazem lembrar dos padrões de comportamento característicos do Transtorno de Personalidade Narcisista (1): “Um padrão global de grandiosidade (em fantasia ou comportamento), necessidade de admiração e falta de empatia, que se manifesta no início da idade adulta e está presente em uma variedade de contextos, indicado por no mínimo cinco dos seguintes critérios:

  1. Sentimento grandioso acerca da própria importância (por exemplo, exagera realizações e talentos, espera ser reconhecido como superior sem realizações à altura);

  2. Preocupação com fantasias de limitado sucesso, poder, inteligência, beleza ou amor ideal;

  3. Crença de ser “especial e único e de que somente pode ser compreendido ou associar-se a outras pessoas (ou instituições) especiais ou de condição elevada;

  4. Exigência de admiração excessiva;

  5. Presunção, ou seja, possui expectativas irracionais de receber um tratamento especialmente favorável ou obediência automática às suas expectativas;

  6. É explorador em relacionamentos interpessoais, isto é, tira vantagem de outros para atingir seus próprios objetivos;

  7. Ausência de empatia: reluta em reconhecer ou identificar-se com os sentimentos e necessidades alheias;
    😎 Frequentemente sente inveja de outras pessoas ou acredita ser alvo de inveja alheia;

  8. Comportamentos e atitudes arrogantes e insolentes.

O termo surgiu bem cedo na Psicanálise com um prognóstico muito pessimista, a pessoa estaria fora de alcance. Isso ao longo do tempo foi mudando na medida que avançaram os estudos sobre a primeira infância, a esquizofrenia e a experiência clínica com as desordens de caráter narcisista.

Em 1914, Freud faz uma distinção entre narcisismo primário e secundário. Ele traz o narcisismo primário como normal dentro do desenvolvimento, onde todo o investimento da libido está voltado para o sujeito. A criança, segundo o autor, ainda não consegue fazer uma distinção entre si própria e o seio que a alimenta, por exemplo.

O narcisismo secundário representa uma retirada da libido dos objetos e investimento dessa libido no ego. Essa retirada poderia estar direcionada para propósitos sadios ou patológicos.

Jung não teve um interesse específico no tema, mas através de seus conceitos e de suas contribuições para a Psicologia do Desenvolvimento podemos notar as características principais do Narcisismo.

Podemos perceber que a ferida do narcisista está na relação primal, ou seja, na relação inicial com sua mãe. Geralmente, teve uma mãe que também teve dificuldades com sua mãe. Assim, não tem suas potencialidades reconhecidas, havendo um rompimento do eixo ego-self.

Neumann (1990) chama o primeiro estágio de desenvolvimento da consciência de “fase urobórica”, de acordo com o antigo símbolo da cobra circular que morde sua própria cauda. Nessa fase, a criança está totalmente ligada ao Self de sua mãe, não havendo para ele nenhuma diferenciação entre mãe e filho. Essa relação primal nos primeiros anos de vida é decisiva e uma mãe não amorosa pode destruir consideravelmente a base da existência da criança.

“Uma personalidade sadia é sinônimo de um eixo ego-self normal e fornece uma garantia de que a relação compensatória entre consciente e inconsciente, que em certos distúrbios graves, fica seriamente prejudicada, continuará funcionando em certa medida” (NEUMANN, 1990, p.54).

Brandão (1987) traz uma análise da figura mítica de Narciso a partir dos conceitos de Jung. Segundo o autor, a história fala de um desenvolvimento patológico relacionado ao instinto de reflexão. “A libido cessa de mover-se em direção ao objeto sofrendo uma ‘psiquização’ e é desviada para uma atividade endopsíquica”. (p.183)

Há nessa volta da libido uma possibilidade de enriquecimento psíquico desde que não se fique preso a ela.

Dessa maneira, o narcisista não pressupõe a existência do outro. A energia psíquica está concentrada nele mesmo, o que traz muita dor e sentimento de impotência nas pessoas à sua volta, sejam eles filhos ou a população que fica à mercê de um governante com essas características.

O que impera na dinâmica narcisista é o poder e não o amor. Nas palavras de Jung: “Onde o amor impera, não há o desejo de poder e onde o poder predomina, há falta de amor, um é a sombra do outro.” (JUNG, 1980, OC VII/1, § 78)

Nas relações de poder o sentimento gerado é o de medo. Medo de posicionar-se, medo da reação do outro à sua fala e assim por diante. Vive-se um sentimento de apreensão e instabilidade.

Em “O Espírito da Esperança”, Byung Hun Han (2024) escreve: “O relacionamento com o outro definha radicalmente quando o outro, que deveria ser um ‘você,’ é rebaixado para ‘isso’, para um objeto que apenas satisfaz minhas necessidades ou confirma meu ego”. (p. 24). Em outro trecho, “o medo e o amor excluem um ao outro; o medo não coaduna com a confiança, nem com a comunidade, nem com a proximidade, nem com o toque. Ele só provoca alienação, solidão, isolamento, perda, impotência e desconfiança.” (p. 25)

Como transitar nesses ambientes narcísicos de opressão e instabilidade?

Ações individuais de confronto com o outro dentro de nós em um processo profundo e cuidadoso podem nos trazer a dimensão de quais aspectos nossos são ativados quando nos deparamos com essas situações, para não corrermos o risco de nos atermos somente ao externo de uma forma polarizada.

“A sombra é a experiência arquetípica da ‘outra pessoa’ que, em sua estranheza, é sempre suspeita. É o anseio arquetípico do bode expiatório, de alguém para culpar e atacar, a fim de obter justificativa e absolvição. Em outras palavras, à medida que tenho que ser correto e bom, ele, ela ou eles se tornam os portadores de todo o mal que não consigo reconhecer em mim mesmo.” (WHITMONT, 1969, p. 146)

Por outro lado, ações coletivas tais como cuidar das crianças, que serão futuros adultos, entre outras, nos ajudam a fazer a nossa parte rumo a um futuro com mais empatia e respeito ao semelhante, diante da crise política e ética na qual vivemos.

REFERÊNCIAS
(1) – Kaplan & Sadock, 2007, p.853 e 865.
BRANDÃO, J. Mitologia grega. Vol. I e II. Petrópolis: Vozes, 1987.
HAN, B-C. O espírito da esperança. Contra a sociedade do medo. Petrópolis: Vozes, 2024.
FREUD, S. A História do movimento psicanalítico – artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
JUNG. C.G. Psicologia do inconsciente. Vol. VII/1. Petrópolis: Vozes,1980.
WHITMONT. C. E. A busca do símbolo. Conceitos básicos de psicologia analítica. São Paulo: Cultrix, 1969.
NEUMANN, E. A criança: estrutura e dinâmica da personalidade em desenvolvimento desde o início de sua formação. São Paulo: Cultrix, 1990.

Imagem: O Retrato de Dorian Gray. Filme. Divulgação.