Sílvio Lopes Peres, psicólogo clínico na cidade de Marília (SP), analista junguiano (IAAP/AJB/IPABAHIA) e integrante da curadoria do Observatório da Psicologia Analítica.
Curatorial
Desde janeiro de 2023, com os fatídicos acontecimentos de atentado contra o Estado de Direito em nosso País, o fantasma de golpe contra a Democracia nos assombra. O recente acontecimento envolvendo Francisco Wanderley Luiz, homem que detonou explosivos na Praça dos Três Poderes, tornando-se vítima de si mesmo, nos alerta para os riscos que acometem a Cidadania. A busca do poder a qualquer preço, à revelia dos legítimos processos sucessórios na governança do País, nos alerta sobre os perigos da emergência de “tiranos”, os pequenos da banalidade cotidiana, e os grandes que desejam determinar os rumos do País. Vivemos um momento em que as forças da Democracia se confrontam com as forças da obscuridade política. Sílvio Lopes Peres nos fala do papel da reflexão no combate à resignação, que tudo naturaliza, e à própria tirania, em todas as suas modalidades.
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O exercício do poder pode se tornar tirânico.
A tirania busca expressar-se em governos e instituições, grupos e equipes, famílias e amigos, gangues e quadrilhas, diretórios estudantis e partidos políticos e, até em ordens religiosas e denominações eclesiásticas. Ela pode se expressar na forma de ditadura, dominação, exploração, coerção, subjugação, valentia desmedida, despotismo.
A tirania anseia a comandar pessoas que valorizam ou superestimam ideias, verdades, interpretações, convicções, pontos de vista, princípios, valores “absolutos”.
Mais importante que os líderes e/ou representantes, a tirania é a regência da regra fixa, do ponto de vista rígido, de um único modo de ser que, tornados crença fundamental, expurgam as divergências. Ou seja, a “uniformidade mental” é defendida e, não importa muito se é imposta.
Aliás, prefere-se a imposição para desestimular qualquer vontade contrária. Qualquer contrariedade é desprezada, rejeitada, perseguida e aviltada.
Contudo, a experiência tem mostrado que se não reagirmos à severidade e ao autoritarismo das regras fixas ficamos resignados.
Neste sentido, segundo o psicólogo e analista junguiano estadunidense James Hillman (1926-2020): “A consciência habitual precisa suprimir para focalizar. Para existir no meio da avalanche de informação que nos assalta, selecionamos e reprimimos. Aderimos ao que funciona para nós. O que funciona torna-se o modo preferido de fazer as coisas e logo o único modo de fazer as coisas. À medida que ficamos mais velhos, e mais cegos, essa tirania da consciência habitual torna-se cada vez mais visível” (Tipos de poder. São Paulo: Axis Mundi, 2001, p. 183-184).
Resignados, abrimos mão, muito facilmente, de desenvolver estratégias de mudanças; às vezes, por temor, outras vezes, por ignorância ou ingenuidade. Resignados, nos adaptamos a hábitos que nos acomodam ao status quo. Resignados, nos omitimos e nos calamos. Resignados, aceitamos a condição de sermos explorados pelos outros; entretanto, nisso reside a vontade de nos tornarmos exploradores dos outros.
Como nos “curamos” da resignação à uniformidade mental, ao pensamento único?
Conscientizados de que, quando a justiça se omite de um governo, o povo fica exposto a crueldades e aos interesses que não são os seus, uma das saídas é a democracia popular e o fortalecimento das instituições sociais e legais, nas quais o silêncio é quebrado e a resignação confrontada, com chances da própria resignação ser transformada.
Não podemos acreditar que “fazemos a nossa própria cabeça a partir de nós mesmos”, nem tão pouco, no dito “cada cabeça uma sentença”. Refiro-me com isso, à necessidade de desenvolvermos a contínua capacidade de questionamento reflexivo; em especial, em nossa época marcada pelo terrorismo verbal da desinformação e mentiras.
“A reflexão é um ato espiritual de sentido contrário ao do desenvolvimento natural; isto é um deter-se, procurar lembrar-se do que foi visto, colocar-se em relação e em confronto com aquilo que acaba de ser presenciado. A reflexão, por conseguinte, deve ser entendida como uma tomada de consciência”, conforme C. G. Jung (1942/1988, Análise Psicológica da Trindade, § 235, Nota 9, Ed. Vozes).
Tiranos sofrem de Transtorno de Personalidade e, precisam de tratamento psiquiátrico e psicológico. Discursos inflamados confirmam os transtornos de personalidade, em especial, dos líderes do País, com o agravante contágio psíquico do restante da população. Tal condição exige diversas atitudes a fim de não sermos “contaminados”, como por exemplo: duvidemos do nababesco sentimento de arrogância; sejamos exigentes quanto ao exame e rigoroso conhecimento de nós mesmos, a fim de descobrirmos nossa capacidade de, também, identificar-nos com o mal; precisamos acreditar que as melhores realizações a serem registradas na história estão no encontro íntimo com nossa alma e não na aglomeração das massas que aplaudem os planos prejudiciais e retiram o nosso direito de viver em melhores condições.