Daniela Laskani, psicóloga clínica e arteterapeuta. Analista junguiana formada pelo IJUSP – Instituto Junguiano de São Paulo (AJB/IAAP). Membro do Departamento de Ecopsicologia da AJB.
Curatorial
Um mundo que se esvai em catástrofes ambientais. Em megalópolis tais como São Paulo as árvores transformam-se em inimigas, segundo um entendimento de que a melhor solução para evitar a destruição dos sistemas aéreos de eletrificação, que deixam a grande cidade às escuras, é a remoção das grandes árvores da cidade. Esquece-se que o cuidado e a poda regular das árvores, o cuidado com a erosão do solo, são fundamentais para a preservação da vida, de toda a vida, humana, animal e vegetal. É o que a autora do ensaio, Daniela Laskani, nos leva a refletir: uma mentalidade que caracteriza “pessoas-não árvores”, desconhecedoras de que a alma que anima a cidade, nutre a todos, humanos e não-humanos.
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O que me separava das árvores prestes a serem cortadas na última quinta-feira (07/11/24) era um tapume de metal e agentes da Guarda Civil Municipal com seus escudos de choque a postos. Um deles me olhou nos olhos inundados e perguntou se eu queria mesmo passar por esse sofrimento, enquanto testemunhava o assassinato das árvores da Av. Sena Madureira. Olhei de volta em seus olhos também tristes e questionei sobre o que ele diria a seus netos quando não tiver mais nada ali além de concreto.
Na mesma cena, chuva, buzinas, trânsito, cartazes, escudos e spray de pimenta contra a população. Dentro dos tapumes, uma imagem de grandeza e abraços desesperados de manifestantes, mulheres dispostas a passar pela humilhação da repressão por aqueles que deveriam estar protegendo-as. Naquele instante transbordava a certeza de que nem tudo está perdido. Apesar do sentimento de derrota, tombada junto àqueles troncos exalando um cheiro fresco do último suspiro, encontrava-me rodeada de pessoas vivas dispostas a lutar para adiar um fim.
Em um mundo inanimado, o reprimido retorna a partir da matéria declarada morta e é exatamente pela morte em si que, segundo Hillman (2014), somos despertados pela anima mundi novamente: “Nossos medos ecológicos anunciam que as coisas estão onde a alma clama por atenção psicológica.” (2014, p. 73) Em meio a tantas injustiças, buzinas e gritaria, escutávamos a manifestação dos pássaros, no desespero ao ver seus ninhos despencando quando a motoserra desligava, e daquelas árvores sob o ataque desproporcional e injusto a seus galhos e troncos.
Seria a chuva a arma de batalha na tentativa de dispersar aqueles trabalhadores que consideram a sua subsistência nada além de seus salários? Sabíamos que muitos não queriam estar ali, enquanto outros atacavam e debochavam dos manifestantes. Jean Shinoda Bolen (2020) diz que existe um abismo que separa “pessoas-árvores”, as que se sensibilizam por elas e junto a elas, de “pessoas-não-árvores”. Além da falta de relação com as paisagens verdes em grandes metrópoles ou intimidade com árvores significativas durante a história de vida dessas pessoas, muito se deve à ignorância e à falta de informação sobre o modo de viver das árvores e do reino vegetal que atua assertivamente para a sobrevivência do ecossistema em comunidade.
As árvores mais velhas se responsabilizam pelas mais novas oferendo-lhes alimento, sombra e água assim como animais fazem ao maternar. Um ecossistema funciona na aliança com outras espécies, um simples arvoredo conta com a ajuda de fungos na região subterrânea das raízes para as trocas necessárias, um sistema parecido com uma rede de comunicação para fonte de informação e alimento (Simard, 2021). As alianças multiespecíficas dos ecossistemas incluem também os humanos nas trocas de gases que precisamos para respirar, por exemplo.
Nas grandes cidades, a concentração de gás carbônico é extrema e sabemos que o aquecimento global está intrinsicamente relacionado ao aumento de gases de efeito estufa devido à produção humana. Portanto, “Quanto mais humanos e menos árvores existirem, maior será a concentração de carbono na atmosfera e mais quente ficará.” (Bolen, 2020, p. xxiii). Os protestos contra a obra irregular e controversa do túnel na Sena Madureira carregam facetas que não podem estar dissociadas; essa é uma luta contra a injustiça socioambiental e mentes de concreto.
Como nos ensinou o ambientalista assassinado Chico Mendes, ecologia não pode estar separada da luta de classes. A famosa higienização urbana é histórica numa cidade como São Paulo e segue, disfarçadamente, escancarando o racismo ambiental na retirada sem aviso prévio de 200 famílias que vivem há décadas em comunidades na região. A luta contra a mudança climática é fundamentalmente sobre direitos humanos e garantia de justiça para as pessoas que mais sofrem com seu impacto. Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda, considera um problema de justiça climática (Robinson, 2021).
Como diz Evando Nascimento (2021): “Nesse quadro geral, as árvores, os arbustos e as ervas continuam sendo os mais comuns entre os comuns, até que um dia se tornem tão raros que finalmente atingirão em nossa consciência o estatuto de incomuns, de vida rara e preciosa a ser preservada. Talvez tarde demais… Não existe verdadeira democracia sem direitos humanos e sem respeito à vida animal e vegetal; e o contrário é ainda mais impensável: o respeito aos direitos humanos e vitais num país não democrático…” (p. 83)
Para concluir, é preciso reforçar que o interesse de lutas como as que se manifestam contra a construção de um túnel na cidade de São Paulo não se resume à jardinagem, embora seja um tema extremamente importante para ser discutido ante o despreparo histórico da prefeitura e o desconhecimento sobre botânica, podas e permeabilidade do solo. Então, a luta tem a ver com a necessidade de (re)a(s)cender o senso de coletividade na cidade.
Abraçar as árvores é sinônimo de empatia, é ser capaz de ouvir uma linguagem que não nos é própria, mas que é possível de ser entendida e (com)sentida em comunidade, uma linguagem que expande nossos poros para o que está reprimido e cimentado. Ascender por essa perspectiva, estabelecedora de uma relação estética com o mundo e não mais uma vez nos separando dele, é o que posso chamar de progresso.
Enquanto escrevo esse ensaio, funcionários da empreiteira contratada pela prefeitura jorram concreto nas raízes das árvores para que se sufoquem, logo após a recomendação do Ministério Público para o encerramento imediato das obras, e de terem sinalizado que não mais as cortariam até segunda ordem. Meu corpo responde entalando cimento na garganta. Como é difícil respirar numa cidade regida por pessoas-não-árvores!
Referências bibliográficas:
Bolen, J. S. Like a Tree: How Trees, Women, and Tree People can save the planet.
Coral Gables, Florida: Conari Press, 2020.
illman, J. The thought of the heart and the soul of the world. Dallas: Spring Publications, 2014.
ascimento, E. O pensamento vegetal: a literatura e as plantas. – 1ªed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.
Simard. S. Finding the mother Tree: Discovering the wisdom of the forest. New York: Alfred A. Knopf, 2021.
Robinson, M. Justiça climática: esperança, resiliência e a luta por um futuro sustentável. Tradução Leo Gonçalves. – 1ªed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.