Pitagoras Baskara Justino, analista junguiano pelo IJUSP – Instituto Junguiano de São Paulo – Associação Junguiana do Brasil – AJB.

Recentemente, em dezembro de 2023, em monografia apresentada ao IJUSP, discuti sobre a importância para nós, analistas pretos e brancos, nos conscientizarmos sobre as imagens (estereótipos transgeracionais sobre pessoas pretas) que adquirimos em uma sociedade racializada como o Brasil. E, ainda, como essas imagens afetam o processo terapêutico (transferência e contratransferência), podendo tanto estagnar (se permanecerem inconscientes) quanto acelerar (quando adequadamente conscientizadas) o processo de autoconhecimento dos pacientes.

Se o complexo de cor inferioriza pessoas pretas, como agem pessoas brancas que recebem inconscientemente os benefícios da brancura da pele? E como atua essa mesma dinâmica nos institutos de formação?

Segundo Maria Aparecida Bento, o refere-se a um pacto silencioso de apoio e de fortalecimento aos iguais na cor. É um sentimento de reciprocidade inconsciente, que acaba preservando a manutenção de privilégios e de interesses de pessoas brancas (Bento, 2002, p. 27). E, por esse fato ser inconsciente (o que é moralmente repudiado mantemos na Sombra), atua de forma tão incisiva na manutenção do mito da democracia racial.

O que quero pontuar é que, quando questionadas, pessoas brancas dizem que não são racistas, além de reconhecerem o racismo como um problema social grave. Mas, raramente, questiona-se quais as imagens e sentimentos, ainda inconscientes, nutrem em relação a pessoas pretas. E, mais importante ainda, como tais conteúdos condicionam minhas ações e sentimentos em relação a pessoas pretas.

Altman (1995) lamenta que, “devido ao fato de que muitos psicanalistas serem brancos e perseguirem privilégios sociais, a psicanálise perdeu uma parte de sua visão noturna, trocando o conhecimento subversivo por uma conformidade com o status quo”. Ele descreve a visão noturna psicanalítica como sua habilidade para “criticar a sociedade e examinar suas implicações intrapsíquicas a partir de uma posição estrangeira e crítica. Tal visão nos permite começar a ver que nosso sofrimento psicológico está unido às culturas nas quais residimos” – Watkins (2008, p. 112)

Os privilégios da brancura da pele ficam mais evidentes nas instituições de ensino e nas grandes empresas, onde a liderança é formada majoritariamente por pessoas brancas. E os processos seletivos e de crescimento na carreira vão sempre carregar o viés da raça, geralmente camuflado pelo mito da meritocracia.

No meu instituto de formação, por exemplo, são raríssimos os candidatos a analistas e analistas pretos. Estar afiliado a uma instituição de ensino onde 98% dos analistas são brancos em um país onde 53% da população é preta/parda, não nos permitiria concluir que a instituição é racializada? E não é um privilégio essa condição ser considerada o normal e nunca ser questionada?

Escapar dessa passividade seria questionar o status quo das nossas relações familiares, profissionais e comunitárias e deixar-se afetar pelas reflexões:

· Por que tenho tão poucos pacientes pretos em meu consultório?
· Por que tenho tão poucos amigos pretos em minha vida?
· Como me sinto diante de pessoas pretas com quem me relaciono (seja no trabalho, com colegas do instituto ou em casa)?
· Consigo perceber as fantasias de poder em relação a elas?
· Tenho a mesma empatia e interesse genuíno por elas, quando as comparo com meus amigos brancos?
· Eventos de psicologia que discutam o racismo, me interessam? E por que não?
· Referencio pacientes para colegas analistas pretos com a mesma frequência que os referencio para analistas brancos?

Na Psicologia Analítica, aprendemos que os complexos não desaparecem. Mas eles podem ser desmascarados de nossas ações e emoções cotidianas e, através da autorreflexão, aprendemos a conviver melhor com eles – ampliamos nossa consciência do mundo. Mas, como instituição, ainda não nos permitimos, realmente, lidar com esse potente complexo cultural.

E quais são nossos sintomas institucionais?

· Ausência da analistas pretos nos institutos de formação junguiana,
· Ausência de analistas pretos em cargos da diretoria,
· Evitação de discussões a respeito do racismo nas Obras Completas de C G Jung,
· Ausência de ações práticas para uma reparação histórica: cotas nos institutos?
· Ausência de uma agenda focada no letramento racial de candidatos e membros analistas,
· Conformismo com uma psicologia branca e elitista.

Fanny Brewster discute algumas ações possíveis para uma reintegração:

· Primeiro, estarmos todos abertos a diálogos sobre o trauma coletivo e a dor psíquica transgeracional e que nos abala diariamente (pretos e brancos);

· Segundo, não aceitar o silêncio. A autora também descreve seu trabalho de moderação de grupo com analistas brancos cujo intuito é discutir e tentar desvendar o racismo no cotidiano da vida dos analistas. Ela descreve que esses encontros sempre despertam “sentimentos de raiva e de culpa no grupo” Brewster F. , 2020, p. 151.

Em ‘Em Direção às Psicologias da Libertação’, Mary Watkins (2008) também propõe modelos de restauração criativa em sociedades marcadas pelo trauma coletivo. Esses modelos visam conscientizar as pessoas (oprimidos e opressores) do quanto o que fazemos é uma aceitação automática dos hábitos que nos cercam na vida social. Eles visam despertar a reflexão sobre quais mudanças de atitudes a conscientização pode fazer florescer.

Acredito que essa discussão possa nos inspirar em como discutir o racismo dentro das instituições de ensino de psicologia – criação de comunidades onde o diálogo estimule maneiras inovadoras de nos vermos no mundo e reimaginarmos nossos contratos sociais.

Conclusão

Nos últimos anos, com as facilidades das plataformas digitais, temos visto situações extremamente violentas, verbais ou físicas, de pessoas brancas contra pessoas pretas. É claro que todos nós repudiamos tais comportamentos que, inclusive, têm implicações legais sérias para seus praticantes. Mas, como analistas junguianos (sendo o foco do nosso trabalho o inconsciente) precisamos ir além do que o ego repudia e nos questionar sobre nossas imagens inconscientes a respeito da racialidade; e ainda, como elas podem estar interferindo e modulando nossos afetos e ações cotidianas.

Algumas reflexões sobre possíveis contribuições dos institutos de formação foram feitas, talvez até de forma utópica, mas com intuito de reimaginar novas e possíveis relações de afeto entre seus membros.

Entendo ser utópico porque é um complexo tão enraizado e inconsciente, em nosso cotidiano, que naturalmente criamos mecanismos de defesa para fugir da culpa e vergonha que a conscientização traria.

Mas, para mim, uma das grandes belezas da psicologia analítica, é que ela nos motiva (e nos ajuda a motivar nossos pacientes) a reimaginar nossas vidas, afetos e relações com o “Outro” e com o mundo. E, aos poucos, talvez, vamos formando uma psique coletiva com maior alteridade. Essa seria a minha utopia para os institutos de formação.

Obras Citadas

Bento, C. (2002). BRANQUEAMENTO E BRANQUITUDE NO BRASIL. Em M. A. Iray Carone, Psicologia social do racismo – estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil (pp. 25-58). Petrópolis: Vozes.

Brewster, F. (2020). The Racial Complex. Em T. Singer, Cultural Complexes and the Soul of America. New York: Routledge.

Watkins, M. (2008). Towards Psychologies of Liberation. Em M. W. Shulman, Towards Psychologies of Liberation. New York: Palgrave Macmillan.

Crédito da Imagem: Neuroskeptic – The Racism of Carl Jung – artigo disponível em https://www.discovermagazine.com/mind/the-racism-of-carl-jung