Editorial:
Nas últimas semanas, o Estado do Rio Grande do Sul vem sofrendo destruição de proporções inimagináveis. A população vive os impactos sobre a infraestrutura das cidades, os serviços básicos, e a vida cotidiana. Acima de tudo, o sofrimento subjetivo das pessoas afetadas mobiliza a sensibilidade de todos os brasileiros. Situações cataclísmicas evocam imagens poderosas oriundas do inconsciente coletivo. Sílvio Lopes Peres invoca uma dessas imagens, o mito de Oannès, o deus-peixe babilônico que trouxe à humanidade a capacidade de “construir cidades e edificações melhores do que aquelas que usavam”, com o “domínio das emoções pelas ciências, pelas artes e pela escrita”. É do que precisamos, e podemos almejar, neste momento de reconstrução.
18 de maio de 2024
por Sílvio Lopes Peres, psicólogo clínico na cidade de Marília (SP), analista junguiano (AJB/IPABAHIA) e integrante da curadoria do Observatório da Psicologia Analítica.
A mitologia persa conta a aparição de uma criatura com cabeça e pés de homem e o restante em formato de peixe. Ela vinha das águas do mar da Eritreia, Golfo Pérsico, todas as manhãs e retornava à noite para as profundezas do mar. Seu nome é Oannès, cuja história remonta ao terceiro século antes de Cristo. Por sua inteligência superior à dos humanos, tinha a missão de ensinar o domínio das emoções pelas ciências, pelas artes e pela escrita.
Essa história é escrita por um sacerdote babilônico, chamado Beroso, segundo o qual, graças às capacidades de Oannès, cabe ao homem construir cidades e edificações melhores do que aquelas que usavam. Enfim, uma civilização que correspondesse aos avanços que precisavam implementar para a sua sobrevivência com a iminência da queda do seu império, no mesmo século 3 a.C.
O mito de Oannès é semelhante ao de Cristo, quando os primeiros cristãos atribuíram-lhe o símbolo de um “peixe” que, segundo C. G. Jung: “como senhor do mês mundial (era) de peixes que apenas começara e que se tornou o espírito-guia de um período que já durou dois mil anos”
A tragédia dos habitantes do estado do Rio Grande do Sul nos dá a dimensão real e simbólica da experiência do clímax perigoso da doença psíquica vivenciado no País. Independentemente da consciência individual, o “eu”, tal como um pequeno bote, navega nas imensas e profundas águas primordiais das emoções. Tais águas têm rompido as frágeis barreiras de contenções, os diques dos compromissos éticos e morais advindos da arte da política, trazendo maior destruição e deixando-nos sem o solo fértil das possibilidades que o senso de responsabilidade nos proporciona. Em especial, quando o indivíduo, de forma egoísta, sente e espera que o “outro” cumpra com os seus deveres, como se ele próprio não tivesse nada a fazer, mas apenas, criticar e disseminar mentiras e entraves gratuitos pela tragédia, em nome da liberdade de opinião.
Todos nós precisamos atentar para a fragilidade de nossas relações humanas, porque somos capazes de nos voltar uns contra os outros, simplesmente porque recusamos assumir os compromissos de nossa parte. Principalmente, os representantes do povo, eleitos para administrar as graves crises que se abatem sobre a coletividade.
Conforme Jung: “A palavra crise também é expressão médica que sempre designa um clímax perigoso da doença”. Basta uma emoção mais forte, para desestabilizar o ego e provocar graves e duradouras mudanças na consciência individual e coletiva. Sabemos o quanto avassaladoras são as emoções quando perdemos ou nos é retirada alguma coisa, em especial, à força. Não podemos perder, nem que seja um pouco, o sentimento de responsabilidade de uns para com os outros, como podemos ver em pessoas que parecem ter seu caráter diminuído, ou perdido de vez, por seu egoísmo e suas mentiras.
No Instituto de Arte de Chicago, encontramos, do pintor francês Odilon Redon, contemporâneo de Monet e Rodin, uma das imagens captadas de suas fantasias e sonhos, de 1896, referente a Oannès. Nela, Redon escreveu: “Eu, a primeira consciência no Caos, subi do abismo para endurecer a matéria, para determinar as formas”.
Hoje, mais do que nunca, a sociedade brasileira espera a boa vontade de todos nós, a determinação no fortalecimento dos vínculos humanos, sob pena de perdermos os marcos civilizatórios conquistados com tanto suor, sangue e lágrimas.
REFERÊNCIAS:
1 https://www.britannica.com/topic/Oannès
2 Jung, C, G. Aion: Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo. Obras Completas, Vol. 9/2, § 127.
3 Jung, C. G. Civilização em transição. Obras Completas, Vol. 10/3, § 290.
4 https://www.artic.edu/artworks/106641/Oannès-i-the-first-consciousness-in-chaos-rose-from-the-abyss-to-harden-matter-to-determine-forms-plate-14-from-the-temptation-of-saint-anthony-3rd-series
Imagem: Odilon Redon – Oannès: Eu, a Primeira Consciência do Caos, Surgi do Abismo para Endurecer a Matéria, para Regular a Forma – or. fr.: Oannès: Moi, la première conscience du chaos, j’ai surgi de l’abîme pour durcir la matière, pour régle; da obra La Tentation de Saint-Antoine.