Editorial:

A discussão contemporânea acerca da sexualidade e da diversidade de gêneros, bem como suas implicações para as teorias sobre o psiquismo humano, questiona nossos conceitos. Esses são desafiados a revisar como percebemos o ser humano e suas conexões com o mundo sócio-histórico. O campo junguiano não pode ficar de fora desse debate, uma vez que possui em seu arcabouço teórico concepções a respeito do “masculino” e “feminino” e instâncias contrassexuais psíquicas. É necessário que a psicologia analítica se engaje no esforço pós-moderno de repensar a subjetividade e as relações entre subjetividade e gênero. É o que nos oferece o presente ensaio.

Resenha do livro “Jung, uma revisão feminista” de Susan Rowland.

Por Claudia Gadotti, psicóloga clínica (PUC-SP), analista junguiana (SBPA/IAAP), mestre em Psicologia Profunda pela Pacifica Graduate Institute (USA).*

O desafio de apresentar um livro com a relevância de “Jung uma revisão feminista” (1), de Susan Rowland (2), mobiliza em todos um grande senso de responsabilidade, mas devo dizer que para mim esse compromisso veio acompanhado principalmente de um sentimento de extrema honra e gratidão, especialmente por se tratar da autoria de Susan Rowland que além de ser considerada uma das mais brilhantes acadêmicas contemporâneas na comunidade junguiana é também uma amiga por quem tenho um enorme carinho e admiração.

Começo, portanto, destacando uma das características marcantes da autora com as quais já nas primeiras páginas do livro o leitor irá se deparar: seu olhar analítico, seu preciosismo nas arguições, sua reflexão profunda e seu conhecimento minucioso dos labirintos e paradoxos da obra de C. G. Jung.

Jung, uma revisão feminista é um dos quinze livros já publicados por ela e certamente chega ao Brasil em um momento importante não apenas para a psicologia analítica mas para a sociedade em geral, quando a discussão sobre feminismo e questões de gênero é imperativa.

Nos tempos atuais em que o número de feminicídios e a consciência de desigualdade de oportunidades entre homens e mulheres ecoa de forma estridente no Brasil, o tema da misoginia de Jung vem se tornando um ponto nevrálgico, transformando-se no calcanhar de Aquiles de muitos junguianos que, apesar das críticas, vislumbram em Jung um autor visionário, concebendo uma perspectiva pós-moderna de sua teoria. Susan traz com competência essa discussão já tão recorrente nos meios acadêmicos, levantando os pontos onde certamente há uma concordância com as críticas à misoginia de Jung, mas também intercedendo a favor de sua teoria, expondo um Jung defensor do feminino e que entendia que o mundo está em sofrimento porque vive de forma unilateral um sistema patriarcal destrutivo.

Diante do cenário global atual de guerras e polarizações, ela nos relembra que o conceito de individuação da teoria junguiana oferece um caminho de cura dessa neurose coletiva através do reequilíbrio da psique, o que só seria possível mediante o cultivo de uma dinâmica mais feminina.

Para a autora, essa importância e legitimidade dada ao feminino seria um ponto favorável para atribuir uma credencial feminista à teoria junguiana. Mas ela reconhece que ser um defensor da dinâmica feminina não faz de Jung um feminista. Ao mesmo tempo que coloca o feminino no centro de sua teoria, ele desqualifica as mulheres como agentes sociais e históricos. É a partir desse paradoxo que a narrativa do livro se constrói, isto é, reconhecendo a misoginia de Jung ao mesmo tempo que tenta resgatar a riqueza de sua perspectiva feminina.

A lente feminista da autora, empregada no livro, observa como o gênero está sendo articulado na obra de Jung para compreender e revelar as relações de poder. Ela nos demonstra por exemplo como a voz da mulher antes expressa através da prima médium se transforma na teoria junguiana em um conceito de anima, isto é uma voz feminina na psique do homem, denunciando um deslocamento de poder de fala dos espíritos para o homem.

Outro ponto extremamente relevante no livro é a discussão sobre a teoria da contrassexualidade. No momento atual quando a questão de gênero torna-se pauta urgente e a reflexão sobre o que é masculino e o que é feminino está em todos os campos de discussão, da política à vida privada, a conceituação dos arquétipos de anima e animus coloca todos os junguianos na berlinda. Como sustentar uma ideia central de sua teoria que é o próprio conceito de individuação a partir de uma representação essencialista de feminino e masculino? Susan discorre sobre esse tema extremamente complexo apresentando uma reflexão cuidadosa e elucidativa onde nos apresenta pensamentos de outros autores e também nos relembra a qualidade andrógina dos arquétipos , trazendo portanto um contraponto significativo às críticas ao essencialismo de Jung na sua elaboração da teoria dos arquétipos contrassexuais.

Todos sabemos que no campo do conhecimento psicológico o limite entre a subjetividade e objetividade é muito tênue, fazendo com que as teorias psicológicas tragam sempre na sua estrutura uma contaminação da psicodinâmica e da personalidade do autor que a constrói. No caso da teoria da contrassexualidade de Jung não é diferente. “Anima” e “animus” não apenas são conceitos datados, ecoando uma cultura sexista do início do século passado, como também evidenciam a personalidade do homem que os elaborou. O livro propõe uma leitura crítica à forma como a elaboração do arquétipo feminino (anima) é especialmente influenciada pela vida pessoal de Jung. Susan realça a importância de seu mito pessoal sobre a construção desse e de outros conceitos teóricos mais abrangentes, decorrendo naquilo que é considerado sua Grande Teoria, dinâmica essa que a seu ver qualificaria Jung dentro do rol dos pensadores pós-modernos.

Os dois primeiros capítulos retratam um pouco os relacionamentos de Jung com mulheres mas já nos introduz às suas ideias mais importantes.

O terceiro e quarto capítulos descrevem aquilo que ela denomina como feminismos junguianos, os trabalhos plurais e diversos de pós-junguianos que refletem sobre as questões de gênero na teoria de Jung, baseados na ideia de que as mesmas foram elaboradas a partir de seu mito pessoal. Entre outros diversos autores que poderiam se encaixar nessa categoria, Susan dá um destaque especial a James Hillman ressaltando sua perspectiva revisionista em relação à anima.

Já nos capítulos finais, através de uma análise crítica e um refinado conhecimento sobre o feminismo pós-freudiano e a teoria de desconstrução, Susan nos proporciona aquilo que ela entende como uma revisão feminista de Jung.

Jung, Freud, Hillman, Woodman, Paris, Derrida, Lacan… Susan nos encanta com sua erudição e conhecimento desses e tantos outros autores no decorrer da leitura, nos apresentando suas principais ideias de forma clara e sucinta , ao mesmo tempo que as inter-relaciona com o feminismo e a questão de gênero.

Jung uma revisão feminista evidencia a relevância da teoria junguiana e nos ajuda a desenvolver uma consciência imprescindível de seus paradoxos e desafios diante de uma sociedade que exigirá cada vez mais uma concepção múltipla, inclusiva e portanto feminista.

Como a própria autora nos diz, o livro tem o objetivo de resgatar esse Jung para além de sua conhecida misoginia e que tem algo a oferecer ao feminismo pós-moderno. Sua intenção é colocar a Psicologia Analítica dentro da pesquisa do feminismo. Jung jamais poderá ser designado como feminista, mas tenho certeza que após a leitura de Jung uma revisão feminista, a comunidade junguiana do Brasil terá mais instrumentos para reivindicar um lugar legítimo dentro do campo dos estudos feministas.

Desejo a todos uma ótima leitura!

REFERÊNCIAS:

(1) Rowland, Susan. Jung: uma revisão feminista. Trad. Viviane Cássia Heimburger Richardson. Petrópolis: Vozes, 2024. (Trabalho original publicado em 2002).

(2) Susan Rowland é docente e orientadora nos programas de psicologia profunda e criatividade e no programa de mestrado e doutorado em estudos junguianos e arquetípicos na Pacífica Graduate Institute, na Califórnia, EEUU. Realizou seu doutorado em literatura em Newcastle e os mestrados nas Universidades de Londres e Oxford, naInglaterra. Em 2003, tornou-se a primeira presidente da Associação Internacional de Estudos Junguianos (IAJS). Autora de mais de 10 livros; atualmente dedica-se à literatura de ficção.

* Claudia Gadotti, psicóloga clínica (PUC-SP), analista junguiana (SBPA/IAAP), mestre em Psicologia Profunda pela Pacifica Graduate Institute (USA), pofessora no curso de formação de analistas da SBPA, coordenadora de grupos de supervisão clínica e de estudos em Psicologia Arquetípica, autora de artigos para Revista Junguiana, co- autora dos livros “Interfaces- Ensaios sobre o feminino” e “Clínica na Pandemia”.